Passado próximo

NAQUELA ÉPOCA – que o brasileiro imediatista, de memória volátil, acrítica e seletiva agora diz que era feliz e não sabia – Dilma era presidente e Sérgio Moro o poderoso juiz da Lava Jato. Como se diz no cinema, also starring Deltan Dallagnol: o ‘também estrelando’ homenagem à anglofilia do procurador. O cerco se fechava em torno de Lula. E Dilma, para protegê-lo, nomeou-o para o ministério. Não sem antes, como fazem os afoitos e os imprudentes, ter grampeado o telefonema do ‘Bessias’, em que avisava Lula que encaminhava o decreto que o nomeava para a Casa Civil.

O RESTO É HISTÓRIA. A justiça bloqueou a nomeação de Lula: desvio de finalidade para poupá-lo de ser investigado como delinquente comum. Dilma e Lula aceitaram, o estalinismo deles só funcionava no partido; não tentaram reverter a decisão em recurso. O trauma do mensalão ainda era forte. Historiadores e os cientistas políticos ainda não analisaram as causas da inação: respeito à ação institucional; impotência para resistir; inexistência à época de milícia digital, gabinete do ódio, distribuição de fake news, quem sabe uma filha fronteiriça como Carlos Bolsonaro?

AGORA É OUTRA HISTÓRIA, cujo primeiro capítulo foi escrito pelo PT, que na ânsia – estalinismo diet – de se perpetuar no poder tantas fez que elegeu o cacareco Jair Bolsonaro, deputado que por trinta anos não passou de figura caricata, irrelevante. O solo estava fértil: a política tradicional desacreditada temperada pelo escárnio do petrolão, uma bofetada em quem, fora do PT, acreditou no partido; os políticos de sempre, como Ciro Gomes, e aventureiros apocalípticos como Cabo Daciolo e João Amôedo. Mais a faca de Adélio Bispo, que fez de Jair Bolsonaro o mártir improvável.

DAÍ O PASTICHE paranoico de tragédia alagoana. E com ele o maior dos benefícios: poupou dos debates o candidato que não sabia (nunca saberá, a condição é congênita) articular a frase completa, montar o raciocínio elementar. O panorama e o atentado criaram o quadro quase perfeito. Quase porque faltava o fecho, que veio quando o futuro ministro, ainda juiz da Lava Jato, liberou à imprensa, antes do segundo turno, o conteúdo de ato judicial que incriminava Lula, e por extensão o PT. Sérgio Moro fez o papel de tornassol, o ingrediente ácido que elegeu Jair Bolsonaro.

NESTA ÉPOCA a história se repete. O presidente da hora, como o da outra época, acossado pelas investigações que se aproximam dos malfeitos da família, repete com sucesso o que a presidente da outra época fez com insucesso. Não nomeia o investigado pela poupá-lo de investigação, mas nomeia o investigador indicado pelo investigado. O investigado não se chama Lula, chama-se Carlos Bolsonaro. O ato é de gravidade maior que o de nomear Lula, como fez Dilma Rousseff. As instituições nada fazem, embora provocadas por ações e movimentos da sociedade civil. Uma tragédia cívica.

TRAGÉDIA tisnada de vingança poética ao derrubar no seu curso exato o agente que fez da investigação dos notáveis sua alavanca política; que caiu ao tentar com o presidente de hoje o que fizera com o de anteontem; Sérgio Moro recebeu a sanção cármica de perder cargo e timing para reerguer-se com o prestígio da Lava Jato. O que vem não se pode prever nem antecipar, a política é como a nuvem, diziam os antigos. De novidade temos o país dividido em dois antagonismos explícitos. Seus causadores próximos estão aí, sem crédito e autoridade: Lula e Sérgio Moro.

A HISTÓRIA não é linear; reflete o humano e suas circunstâncias, variáveis e movediças. Mas as circunstâncias, mesmo nas revoluções totalitárias, lá no futuro remoto refluem à essência básica, como na Rússia e na China. O Brasil, não; como na gramática italiana, insiste em conjugar o passato prossimo. Nosso passado próximo é o futuro, também próximo. Foi e pode ser a ditadura militar. Futuro de verdade, com a potencialidade da evolução, insistimos em descartar este é nosso destino histórico, essência da raça, traço genético. O passado-futuro próximo se aproxima.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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