O Natal que está dentro de nós

O saudoso Rubem Alves, que teve educação religiosa protestante, confessava que, quando menino, lá nas Minas Gerais, tinha uma única inveja dos católicos: o presépio, armado no Natal. A cabaninha coberta de sapé, Maria, José, os pastores, ovelhas, vacas, burros, misturados com reis, anjos e estrelas, numa mansa fraternidade, contemplando uma criancinha, mexiam com o pequeno Rubem. Também lhe comovia a alegria dos católicos mais humildes ao transformarem pobres salas de visitas em lugares sagrados.

Acho que todos nós, católicos ou não, sempre nos sentimos fascinados pelo presépio de Natal. Se não tanto pela cena, ao menos pela singeleza da representação. Rubem Alves dizia sentir uma tranquila beleza triste diante dela. Que fazia acordar uma ausência na alma dele, a lembrança de algo que teve e perdeu. A essa ausência, ele chamava de “saudade”. Mas, com precisão poética, fazia questão de advertir: “Eu não tenho saudade. É a saudade que me tem”. E, como Drummond, Rubem queria aconchegar a saudade nos seus braços. “Porque saudade é um estar em mim” – justificava, rogando que, assim, não o consolassem.

Ah, meu querido amigo Rubem! Quanta falta você nos faz!

Pouco importa se o presépio encerra uma verdade ou não. Se aconteceu efetivamente ou se é mero símbolo criado pela teologia católica passa a ser irrelevante. O que vale é que, com ele, as crianças do mundo todo são transportadas a um outro mundo, que não sabem bem o que é, mas que as encanta e lhes faz muito bem. Esqueçamo-nos da correria dos shopping centers e da volúpia comercial. Ainda que existentes, elas, na verdade, não fazem parte do verdadeiro Natal.

Rubem Alves lembrava um texto de Octávio Paz, que tinha como um de seus favoritos e que aconselhava ler devagar, “como quem rumina”:

“Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado feito de tijolos e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora ficamos espantados por eles serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais. Não, isso que estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes. Em algum lugar, onde nunca estivemos, já estava o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que recordamos e quereríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantados… Adivinhamos que somos de um outro mundo”.

O presépio era capaz de fazer isso com Rubem Alves. E, com certeza, faz com todos nós. Mexe com a criança que habita em nós. Por isso, não tem necessidade de explicações. “Na manjedoura, dorme uma criança” – sublinhava Rubem –, “e não existe nada mais comovente do que uma criança adormecida. Quem contempla uma criança adormecida, fica manso”. Até porque – concluía –, “uma criança adormecida não pede festas; pede silêncio e tranquilidade”.

Narra a tradição que o presépio foi recriado por São Francisco de Assis, no século XIII, e desde então passou a simbolizar a união dos mundos, dos animais e dos seres humanos com o divino. Na opinião de Francisco, além de marcar o nascimento do pequeno Jesus de Nazaré, o presépio é um elogio à humildade e à simplicidade. Tão bom se assim fosse…

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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