S.O.S Hipotipose – lutar com palavras é a luta mais sã

Noventa e nove por cento dos escritores não sabem o que é hipotipose. O 1% restante simplesmente dá de ombros. Não é doença de cavalo, já aviso. Calma. Leia isto: “Algumas vezes, na praia, começava a chover subitamente, as nuvens deslocando-se velozmente sobre o mar, como cavaleiros negros em arrasadora carga de cavalaria, os raios cortando o céu como golpes de cimitarras zangadas. As moças correriam para seus suéteres e bolsas de praia, alguém recolheria o toca-discos portátil e o álbum de 45-rpm, os rapazes ergueriam o cobertor sobre a cabeça como uma marquise e todos buscariam a segurança da calçada do restaurante mais próximo. Lá ficariam eles contemplando a praia batida pela chuva, os canudinhos de Coca-Cola, torcidos e manchados de batom, dentro das garrafas vazias”.

Você começou a entender o que é hipotipose. Talvez possa se dizer que é coisa antiga, da literatura antiga. Bem de quando as pessoas sentavam quietas numa chaise-longue e se deleitavam com os romances. No caso, esse parágrafo acima é de uma novela policial de Ed McBain. Hipotipose seria a descrição pormenorizada de uma cena, com pouca ou nenhuma análise por parte do autor. Trataria da apresentação objetos visíveis em vez de elucubrações espirituais. Acho que ela ainda é interessante pra autores que ganham por palavra — falo dos estrangeiros, claro! As caudalosas descrições ajudam a encher linguiça e produzir mais um best-seller.

Pra exemplificar, diria que Os sertões, do Euclides da Cunha, seria hipotipótico por excelência. Nota dez. E o Dalton Trevisan de hoje tiraria zero. E seria a nota máxima, pois tirar dez significa ter mãos pesadas e estilo oceânico.

Outro exemplo que tirei do livro O perfume, de Patrick Süskind. Logo no capítulo 1, segundo parágrafo, pra situar toda a ação do livro, o autor descreve assim a cena: “Na época de que falamos, reinava nas cidades um fedor dificilmente concebível por nós, hoje. As ruas fediam a merda, os pátios fediam a mijo, as escadarias fediam a madeira podre e bosta de rato; as cozinhas, a couve estragada e gordura de ovelha; sem ventilação, as salas fediam a poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, a úmidos colchões de pena, impregnados do odor azedo dos penicos. Das chaminés fedia o enxofre; dos curtumes, as lixívias corrosivas; dos matadouros fedia o sangue coagulado. Os homens fediam a suor e a roupas não lavadas; sua boca fedia a dentes estragados, seu estômago fedia a cebola e, o corpo, quando não era bem mais novo, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas”. E vai por aí.

Uma fedentina que causa arrepio e engulho. Só não concordo com o autor quando ele diz que o fedor daquela época seria inconcebível pra nós, né? Ou será que ele disse isso de propósito, pra gente rir?

*Rui Werneck de Capistrano é autor de Nem Bobo Nem Nada

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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