A língua muda, mas devagar

Sanha persecutória sobre uso de palavras revela autoritarismo e ignorância sobre dinâmica linguística

A professora Jan Alyne, da Universidade Federal da Bahia, está sendo acusada de transfobia por ter dito que a aluna Liz Reis parecia estar “chateado”. Liz nasceu homem e se identifica como mulher, mas não possui marcadores visíveis do sexo feminino. Ademais, era a primeira vez que ia à aula da disciplina, que teve início um mês antes do episódio.

O termo transfobia designa medo, intolerância, rejeição, aversão, ódio ou discriminação contra pessoas transgêneros. Basta um mínimo de sensatez para perceber que o termo “chateado” direcionado a uma mulher trans está muito longe disso.

Trata-se de um dos graves problemas do movimento identitário, que se baseia na ideia de uma rede difusa de poder que age a partir de cada indivíduo por meio dos usos inconscientes da linguagem. Essa ideia de que a opressão está contida em toda interação, o que gera politização paranoica sobre cada faceta da vida, assume ares de religião puritana.

Cada palavra ou ato do cotidiano é ocasião para dar glórias a uma causa política e, também, para apontar o pecado dos hereges. O de Jan Alyne foi usar um adjetivo no masculino, o suficiente para que fiéis desencadeassem um processo inquisitório.

Entretanto o ambiente universitário não combina com dogmas. Alunos e professores precisam se sentir livres para se expressarem, sem medo de macularem a fé alheia.

Assim como no caso da demanda pelo pronome neutro, usa-se sempre o argumento de que a língua é viva, logo, mutável. Mas as mudanças ocorrem paulatinamente ao longo do tempo pelo trabalho de escritores e, principalmente, pela dinâmica popular, que consagra determinados termos e construções gramaticais através do uso disseminado.

Alterações na língua, portanto, não podem ser impostas goela abaixo. Caso contrário, trata-se de autoritarismo com laivos puritanos, e quem se diz defensor de liberdades individuais —como a sexual e a de gênero, por exemplo— não pode aceitar esse mecanismo persecutório sem cair em flagrante contradição.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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