São 28 dias trancada aqui e estou dando defeito
Semana passada comprei uma flauta. Eu não toco nenhum instrumento e não pretendo aprender a tocar flauta. Nem sei onde ela está agora. Já não lembro mais como é usar maquiagem e sapatos. “Ah, tadinha dela! Que problemão, hein, princesa? Encastelada em sua angústia branca na zona oeste, né, minha filha?” Vocês ouviram? Essa é uma das muitas vozes da minha cabeça. Pelo menos “o superego com consciência social” é uma voz amiga. Às vezes mais amiga dos outros do que minha. Pior é quando ouço de repente: “Agora chão! Dez flexões, ô baranga do braço de polenteira!”, ou “sem uma base em filosofia você não vai entender nada, ignorante!”. Eu levo bronca o dia inteiro trancada sozinha no meu escritório. Já nem sei o que estou escrevendo. Você também está louco?
As vozes “sororidade tá na moda” e “compaixão & psicanálise” me recriminam toda vez que listo meus ódios antepassados. Mas, por Deus, são 28 dias enfurnada aqui e estou dando defeito. Enquanto tomo banho me volta uma raiva louca de gente com quem briguei no colégio, na faculdade, nos meus primeiros empregos. Ontem liguei para o Luis, que é o meu melhor amigo, e comecei a falar mal de uma colega nossa: “Ela achava que eu tinha conseguido o emprego porque jantei com aquele cara horroroso. Eu vou ligar AGORA pra ela e”. Ele primeiro ficou em silêncio, provavelmente incrédulo, depois teve um ataque de riso: “Mas isso faz 11 anos!”. Eu sei, mas tá voltando tudo. Você também sente que quanto mais se isola, mais o passado se isola junto? Ontem eu lembrei que, na segunda semana de namoro com o Pedro (há mais de sete anos), ele me levou a uma festa de “gente do cinema” e desapareceu. Brigamos duas horas por causa disso. “Quem você pensa que é? Eu me senti uma idiota! Isso não vai ficar assim! A próxima festa a que nós formos, se um dia as festas voltarem a existir”. Pedro me preparou um chá e falou da sua esperança sobre uma vacina pra daqui a um ano e meio.
Eu tenho motivos pra estar angustiada e louca e sofrendo? A maioria das vozes da minha cabeça dizem que não, porque sou privilegiada. Eu tenho que fazer doação e cuidar dos velhos da família. Não posso pensar em mim numa hora dessas! Mas pra você, caro leitor, eu posso confessar que tenho pensado bastante em mim. Em cada decisão que tomei dos meus seis anos até hoje de manhã. E rumino e pondero e tento decifrar tudo que vai da minha capa até os escombros do meu caráter. E desafio meu corpo a chegar a todo microcantinho escondido da casa. E limpo e depois de novo e ainda acho que está sujo. Eu e a casa em vigília obsessiva. E compro caixas organizadoras toda semana pela internet. E quando chegam eu passo álcool nelas muitas vezes.
Eu sei que posso descer às cinco da manhã e aproveitar as ruas vazias. Talvez dançar e virar uma cambalhota. Mas quem quer acordar às cinco da manhã? Eu não estou no mood de dançar e não sei virar cambalhota. A única vez que desci nessa quarentena, no dia seguinte chegou uma circular nos apartamentos sobre “não utilizar o hall para tirar a roupa”. Alguém ficou muito ofendido com a minha bunda caída. Me besunto tanto de álcool que comecei a ficar culpada (de acabar com o álcool do mundo) e passei a me besuntar de Listerine com álcool.
Eu tenho cheiro de banheiro de churrascaria cara. Meu domingo foi inteiro dedicado a inventar uma maneira de as frutas e os legumes não emergirem na água com cândida. Toda hora eu dou um Google pra saber quais legumes e frutas são porosos, porque tenho medo de criar uma úlcera por ingestão de água sanitária. E nisso vai um dia. Não dá tempo de tocar flauta, e eu nem queria. O mamão é poroso?