Saudade de um bravo guerreiro

De vez em quando, no atual dia-a-dia de tanta tristeza, ódio e manifestações de incompetência de um desgoverno desequilibrado e mal-intencionado, enquanto a renitente Covid-19 recusa-se a render-se, lembro-me de figuras que já se foram mas aqui deixaram um exemplo de luta e muita saudade.

Uma deles foi Plínio Marcos. Para quem não sabe, ele foi poeta, dramaturgo, jornalista, escritor, comentarista esportivo e torcedor do Jabaquara, uma aguerrida equipe da segunda divisão do futebol santista. No fundo, porém, Plínio era apenas um menino rebelde, capaz de, aos 29 anos, dar ao Brasil obras-primas da dramaturgia nacional do calibre de “Dois Perdidos numa Noite Escura” e “Navalha na Carne”. O povo, particularmente os excluídos e os perseguidos, era a sua grande preocupação. Por isso, foi considerado maldito, censurado, proibido de trabalhar e de dar o seu recado. Só não lhe tiraram o direito de pensar. Chegou a vender poesia nas filas de ingresso aos teatros para sobreviver. Nos últimos anos de vida, encontrara no tarô a forma de enfrentar as dificuldades e descobrir o misticismo. Era uma figura extraordinária.

Em depoimento para a revista “Caros Amigos”, Plínio traçou um breve auto-retrato. Curto e grosso. Bem ao seu estilo. Cortante como fio de navalha. Contou que começou como palhaço de circo. E que era analfabeto e gago. A sua primeira peça chamou-se “Barrela”, a história de um garoto da sua rua, que foi injustamente preso e sofreu horrores na cadeia. Todo mundo achou um absurdo porque entrava palavrão. Depois, escreveu ‘Fantoches’, mas cometeu um grande erro na encenação: dar intervalo. Explica: “O público saiu pra mijar e não voltou mais”.

Quando 1964 chegou, ele quis entrar para a Escola de Arte Dramática, mas não pôde, porque era analfabeto. Então, virou camelô. Vendia álbum de figurinha e canetinhas. Aquelas de mulher nua.

Na estreia do ‘Dois Perdidos numa Noite Suja”, no Arena, só tinha na plateia a mulher do Ademir Rocha; a então mulher de Plínio, a atriz Walderez de Barros; e um bêbado, que não queria sair de jeito nenhum. Plínio pensou em dar uma porrada nele. Mas não deu: ele tinha sido o único a pagar o ingresso.

Contou que uma noite, houve um debate na TV, ao vivo, com a deputada Conceição da Costa Neves, que criticara duramente a peça. “A Conceição começou: ‘A Wanda Kosmo disse que as suas peças são muito ruins, pornográficas’. Wanda que estava presente desmentiu no ato: ‘É mentira!’. E Conceição: ‘Quero que me dê um câncer na boca se for mentira!’. Eu disse pra Wanda: ‘Diga que também quer um câncer na boca’. Ela disse. E quando começou a discussão pra decidir quem ia ter o câncer na boca, o pau comeu. Maria Luísa Castelli, que estava na plateia, subiu ao palco disposta a grudar a Conceição. Mas a polícia agarrou a Maria Luísa. O D’Aversa, que era forte pra caraco, pegou o polícia por trás, com revólver o tudo, e falou assim: ‘Querido, não se exalte!’ Foi um delírio”.

Cenas como essa dão bem a dimensão de Plínio Marcos, um homem que viveu intensamente, que tinha opinião e jamais se negou a externá-la.

Quando foi preso, por ordem da “redentora”, achou que o que tinha que fazer ali era reclamar. Chamou o carcereiro e foi perguntando: “Porra, não tem café nesta merda?”. A resposta: “Aqui é quartel, acorda às 7 horas e tu recebe um cafezinho”. E o Plínio: “Vai tomar no cu, que eu não sou soldado, sou artista e acordo às 10 horas!”. Mais tarde, durante o interrogatório, foi outro espetáculo. “Por que escreveu essa peça?” – quiseram saber. “Que peça?” – indagou. “Essa dos militares gorilas”. “Ah, eu queria humanizar o exército”.

Assim era Plínio Marcos, para quem o segredo da vida está em saber brincar. No fundo, ele era mesmo um sujeito suave, meigo e doce. E muito divertido. Embora fosse também capaz de perpetrar frases de indiscutível verdade, como: “Em político eu só vou acreditar no dia em que morcego doar sangue”.

Está fazendo muita falta.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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