Se hoje não devo nada a ninguém, é porque devo tudo à minha mãe

Quando não estava arrumando a casa, ela desrespeitava páginas com prosas e poesias, ocupando o papel com sua desordem

Sempre tirei onda pelo fato de ter chegado aonde cheguei sem ser filha de pessoas consideradas importantes. Estava mentindo para os outros, mas, em especial, para mim mesma.

Em especial quando o assunto é a minha mãe, uma dona de casa de origem muito humilde que dedicou a maior parte de sua vida à criação dos três filhos que gerou.

Cresci ouvindo ela dizer que eu deveria estudar e trabalhar muito para nunca depender de um marido no processo. E que, se um dia cozinhasse para um homem, uma espécie de maldição colaria meu umbigo no fogão para todo o sempre.

Anos depois, encontraria na máxima de Virginia Woolf uma tradução mais refinada do que minha mãe já dizia: “O primeiro dever de uma mulher escritora é matar o anjo do lar”.

Concentrei todos os meus esforços para me tornar uma mulher em nada parecida com minha mãe. Ela é uma cozinheira de mão cheia, e eu me recusava a aprender a cozinhar.

O resultado foi que me envolvia sistematicamente com homens que cozinhavam para mim, me achando a maior empoderada das empoderadas.

No entanto, quando o relacionamento chegava ao fim, junto com ele apodreciam os ingredientes na minha geladeira, e eu sempre acabava perdendo uns tantos quilos e ganhando uma aparência frágil. Ironicamente, minhas tentativas para não ser dependente de um homem me levavam a reproduzir o mesmo destino trágico.

Todo Natal, minha mãe ganhava uma agenda para organizar seus afazeres do lar. Naquelas folhas, libertava-se de sua rotina de mulher submissa.

Quando não estava arrumando a casa, desrespeitava cada página com prosas e poesias, ocupando cada centímetro do papel com a desordem de seus próprios pensamentos.

Nessas páginas, ela escrevia sobre naves espaciais pilotadas por anjos caídos, sapatos falantes, pássaros que chocavam pedras preciosas.

Mas eu não levava minha mãe muito a sério. Tentando não me tornar uma mulher como ela, ocupei todos os meus dias escrevendo e criando.

Hoje, se eu sinto orgulho da mulher em que me tornei, é justamente por causa dela. Alço voos mais altos porque um anjo caído pilota a nave. Sigo meu caminho porque herdei sapatos tagarelas. Brilho por causa de um pássaro que choca pedras preciosas.

Se hoje eu não devo nada a ninguém, é porque eu devo tudo à minha querida mãe.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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