Se você é mãe de mulher no Brasil

Ser mãe de mulher nesse país é esporte radical: além de dedicação, envolve medo, coragem e adrenalina

Se você é mãe de mulher no Brasil sabe o que se passou pela minha cabeça. Ser mãe de mulher aqui nesta terra é como praticar esporte radical: além de dedicação, envolve medo, coragem e adrenalina.

Os incômodos começam logo cedo, na frente do espelho. Umas se acham gordas demais, outras retas demais, outras redondas de menos. Você irá se esforçar para fortalecê-la, mas não importa o que faça, não importa o quanto blinde aqueles ouvidos, sem mais nem menos, um dia eles serão alvejados por um ou mais desses adjetivos: piranha, puta, vagabunda, rameira, vaca, galinha, piriguete, biscate, vadia.

Se você é mãe de mulher no Brasil, terá que passar pelo constrangimento de explicar a sua menina que talvez ela seja confundida com uma almofada no transporte público. Amassada, apalpada, apertada. E que se cuide na hora de reclamar: pode ser que o apalpador reaja.

Quem sabe um dia você se pegue pesquisando coisas estranhas no Google: spray de pimenta, curso de autodefesa, soco inglês. Talvez ensine a sua filha a gritar alto. A aplicar mata-leão. A chutar ovos a ponto de transformá-los em mexidos.

Ao ver a filha sair, talvez perceba que dizer “leve um casaco” é pouco. Melhor levar um sobretudo. Ou um escafandro. Todos os dias, cerca de 200 filhas de mulheres são estupradas no Brasil. Sendo que mais da metade é menor de 13 anos. Sabe o que isso significa? Que se você é mãe de mulher, não tem sossego nem dentro de casa, já que a maioria desses abusos é cometida por pais, avós e tios.

E então elas crescem. E como é bonito vê-las crescer, vê-las gostando de alguém. Junto com a paixão da filha, nasce a nossa torcida: que seja por um cara bacana, que ela nunca ganhe de presente do namorado uma bifa.

Se a nossa filha gosta de outra mulher, podemos ficar mais tranquilas. Ou quase, já que sempre haverá algum sujeito achando que, para ela gostar de outra mulher, alguém não deve ter feito direito o serviço. E lá vem a tentativa de um ménage ou de um sexo corretivo.

Tira a mão do seio da minha filha, a mãe da deputada Isa Penna deve ter pensado, quando ela foi assediada em plena Assembleia Legislativa. Se você é mãe de mulher no Brasil, vai se desdobrar para que sua filha seja respeitada na mesa de reunião e de cirurgia (lembra-se das pacientes que foram violentadas?), vai esbravejar para que receba o mesmo salário que um homem, vai torcer para que ela seja poderosa, mas não tanto quanto Marielle Franco.

Se você é pai de mulher, vai se preocupar da mesma maneira, mas a partir de uma epiderme que não sentiu as mesmas violências. Ser mãe de mulher no Brasil é, na maior parte do tempo, uma alegria e, às vezes, um sofrimento triplamente qualificado: sentimos pelo que o nosso corpo passou, pelo que o das filhas passa e ainda por ter de cerceá-las, quando tudo o que uma mãe quer é ver um filho, de qualquer gênero, livre e independente.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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