Será que ele é?

Hoje torço para que o deputado que quis “caçar” uma mulher em situação de vulnerabilidade seja, ele sim, cassado

Eu lembro desse sujeito parado ao lado da minha mesa, em uma das agências de propaganda em que trabalhei, olhando para todas as mulheres do recinto e falando para um estagiário: “Aqui não tem condição”. O menino insistia: “A fulana do atendimento é bem bonita”. Ao que o redator respondia: “Morena demais”. O subalterno, querendo agradar, apontava a loiríssima da mídia: “E ela?”. O elemento balançava a cabeça: “O cabelo é pintado e a cara é ‘muito brasileira’, não tem jeito”.

Aquele rapaz que tinha lutado bravamente para ser alguém (tinha mesmo? Por que, na época, eu realmente achava que pensar piadas para vender bolacha e ganhar fortunas antes dos 30 anos era ser genial?). Que a gente chamava para as festas e para os almoços. Que fazia caretas e imitava pessoas, nos levando à gargalhada. Ele estava mesmo sendo… Será? E por que, meu Deus, a gente ainda falava com ele? Onde estava nosso caráter em 1999?

Você me pede que, por favor, tome muito cuidado com meu costume de usar “nazi” para xingar os outros. Diz que é perigoso. “Usa racista, Tati. Usa hétero top nojento. Sei lá”.

Você está certo. Mas, apesar da sua beleza, da sua inteligência e de os seus olhos serem um mar calmo que me causa tantas arrebentações no peito —e do quão absurdo é o fato de o mundo e este texto comportarem, ao mesmo tempo, o tipo de homem que você é e o tipo de homem que existe aos montes por aí —, eu vou sim chamar de nazistinha de merda esse indivíduo, parado na minha lembrança ao lado da minha mesa, disposto a, em plena luz do dia da virada do século, ir além de objetificar mulheres (como se isso não bastasse para que ele fosse o pior dos seres).

O que esse redator fazia, e eu na época não conseguia dar nome, era uma espécie de caçada pela raça ariana em agências e baladas paulistanas. E isso é, sim, racismo, sexismo, machismo, mas o “nazi” fica esperneando na minha boca. E a gente precisa, cada vez mais, nomear o que nos adoece.

Lembrei dessa história quando o deputado estadual Arthur do Val (ex-Podemos, ex-MBL e ex da namorada que lhe deu um merecidíssimo pé na bunda) narrou em áudios criminosos e repugnantes que a fila de refugiadas da Ucrânia é um ótimo lugar para “pegar deusas” e fazer o tal “tour de blonde”.

Isso existe mesmo. Eu conheci muitos publicitários que iam quase todo ano para o Leste Europeu atrás de mulheres que eles consideravam, pela raça e pela cor, superiores. E eles voltavam cheios de fotos. Exibiam para os estagiários (que sonhavam logo poder fazer o mesmo, e logo podiam). Postavam no Facebook.

Outros publicitários comentavam: “Que que é isso, man! Mandou bem!”. E o papo era exatamente esse do áudio do deputado: lá elas te dão bola porque são pobres!

Hoje torço para que esse deputado, que quis “caçar” uma mulher em situação de vulnerabilidade, seja, ele sim, cassado. E não possa mais se candidatar nem a ser humano.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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