Sessão da meia-noite no Bacacheri

sisters

Irmãs siamesas, criadas por freiras num orfanato, são finalmente separadas depois de vários anos vivendo literalmente unidas. Mas a separação causa um transtorno irreparável e as irmãs passa a rivalizar uma com a outra. É nesse cenário que surge um assassinato, e uma das gêmeas está diretamente ligada ao crime. Suspense|Brian De Palma|92 minutos|Estados Unidos|1973

Sisters é em muitos aspectos um novo “primeiro-filme” para Brian de Palma. Seus filmes anteriores, em que conte um nível de qualidade impressionante, ainda são elaborados exercícios para se saber aonde ir no cinema, como funciona essa máquina de ficção, quais são os efeitos expressivos que se pode tirar dela. Sisters é o primeiro esforço consciente (e, importante, auto-consciente) do diretor em juntar tudo aquilo que aprendeu, colocar num formato que lhe seria especialmente caro daí para a frente – o suspense –, e estabelecer seu trabalho sob a égide da citação e da referência. Pois Brian de Palma foi um dos primeiros cineastas a problematizar em seus filmes o fato de que o cinema já tinha passado de sua “era de ouro” (Griffith, as vanguardas), de seu período clássico (Ford, Chaplin) e também da época moderna (seja ela via Welles, Rossellini, Godard, Antonioni…). Aquilo que Alain Bergala apontava em 1985 a respeito do cinema maneirista1 – [o que une esses cineastas tão diversos] é a consciência de, pelo menos quando eles fazem esses planos, que o cinema já tem 90 anos (…) e que isso pesa fortemente no desejo e na dificuldade de inventar um plano de cinema hoje – já estava plenamente presente no pensamento de Brian de Palma quando ele faz Irmãs Diabólicas. Ainda que seus outros filmes já o indicassem em uma ou outra passagem, um ou outro plano ou referência, é nesse filme a primeira vez em que De Palma faz seu primeiro manifesto de cinema como a arte da re-escritura, da excelência artística como diálogo entre criadores, da visualidade como elemento motor do cinema acima da narratividade e dos mecanismos de contigüidade (a montagem paralela, o split-screen, os monitores de segurança) para criar suspense e tensão física no espectador.

Por que teria Sisters esse grau de prevalência em sua primeira obra? a) Porque é a primeira reflexão e trabalho sistemáticos em cima da obra de um cineasta específico, Alfred Hitchcock; b ) Porque é a primeira vez que o filme não se apresenta como uma “história”, mas como uma relação entre texto e subtexto (onde o subtexto seria a história do cinema), entre original e cópia; e c) Porque é a primeira vez em sua obra que De Palma não se interessa em partes ou seqüências de seu filme, mas em todo o conjunto.

Hitchcock, primeiramente. É certo que o próprio Brian De Palma considera (e considerava já à época, como é possível observar nos bônus do DVD do filme) privilegiada sua relação de influência com o realizador de Um Corpo Que Cai para esse filme. De Sir Alfred, Brian De Palma retira para si mesmo uma filosofia de cinema que utiliza até hoje: fazer o filme funcionar por idéias visuais, e usar o suspense como gênero privilegiado para fazer valer essa verdade sua (e de Hitchcock também). Há um ideal de “cinema puro” sendo trabalhado, um todo-imagem que faria contraposição a um todo-escrita que domina mais e mais o cinema convencional, dos dramas psicológicos às intrigas de roteiro que fazem do visual apenas o mínimo necessário para fazer a história se contar. De Palma inverte a fórmula: o roteiro, a história a ser contada, é ela o mínimo necessário para fazer as imagens se mostrarem.

Mas além dos princípios básicos, tornados axiomas e repetidos quase sempre a cada entrevista (transformar uma história em idéias visuais), encontramos alguns dos mais fortes cacoetes – e efeitos estéticos – de Hitchcock. Além da referência básica que é a trilha sonora de Bernard Herrman (embora muito mais estridente e assustadora que nos filmes do cineasta com quem mais colaborou), em Sisters também há uma mulher que olha, de binóculo, o que acontece no prédio em frente (Janela Indiscreta); mais adiante, há infiltração de um personagem no referido prédio que, indo procurar provas, acaba tendo que esconder-se dos inimigos que entram no apartamento (ainda Janela Indiscreta); a morte ainda na apresentação do filme do personagem que guia o espectador no filme (Psicose); e o momento em que a heroína se infiltra tanto a ponto de ficar à mercê dos “maus da fita”, sendo entorpecida contra sua vontade (Intriga Internacional, mesmo que a cena deva admitidamente mais a O Bebê de Rosemary). No meio de tanta relação de citação, o que faz de Brian De Palma um cineasta que vai além do plágio para transformar a referencialidade em obra-de-arte? Poderíamos dizer que é o talento, que é a vantajosa relacão entre apropriação e efeito conseguido, mas isso tudo não daria senão um artista que ora consegue seus objetivos, ora os frustra. O que faz de Brian De Palma um realizador singular dentro da história do cinema é conseguir construir, com instrumentos aproveitados de outros cineastas (e está aí um outro foco de interesse, o da intertextualidade), uma rede de signos que já não é mais Hitchcock ou Howard Hawks ou Godard ou Orson Welles, mas Brian De Palma.

Em Sisters essa rede de signos já está presente, definitiva. Desde o início do filme, somos apresentados a uma situação banal, um programa de TV em que passa uma pegadinha. Uma garota cega se despe e um homem negro a observa. Corta para as opiniões dos participantes do game televisivo, que confiam na impertinência do homem. Depois de terminada a pegadinha (em que afinal o homem virou o rosto para preservar a moça), o apresentador chama ao palco os dois personagens: ela não é cega, e ele não é um negro tarado. Mais tarde, depois de uma noite de amor e sexo, as situações se invertem: ele fará o papel do cego (afinal, não sabe que a moça tinha uma irmã-gêmea ex-siamesa) e ela fará o papel do algoz. Primeira lição em matéria de De Palma: uma imagem nada mais é do que uma imagem, e não a figura da verdade em forma bidimensional. É preciso sempre desconfiar. Logo após, quando o negro apaixonado (acabara de comprar um bolo de aniversário para comemorar a data das duas irmãs gêmeas) é esfaqueado até a morte, De Palma abre um enorme split-screen. Enquanto numa parte da tela observamos o que aparece à vista da jornalista do prédio em frente, na outra vemos o que se passa dentro do apartamento. A tensão (e o split-screen) permanecerá até que a polícia chegue e venha a ter com a jornalista, então já na portaria do prédio das irmãs, e a irmã boazinha e seu marido possam esconder o corpo do homem morto e apagar os vestígios do assassinato. Segunda lição em matéria de De Palma: o que faz a tensão é a contigüidade, é o fato de dois universos diferentes poderem se tocar. Se eu vejo você, é porque posso tocá-lo. E o contíguo nada mais é do que o próximo que se acredita separado sem verdadeiramente estar. Daí a tensão que nasce.

Como se sabe, o enredo de Irmãs Diabólicas (perdão ao leitor por referir-me sempre ao filme como Sisters, mas a tradução portuguesa é de doer) envolve duas irmãs siamesas separadas numa operação, e como elas desenvolvem personalidades diferentes. Uma é doce, adorável e linda (mesmo que de uma beleza estranha), enquanto a outra é anti-social, eternamente invisível e terrivelmente nociva, tanto à irmã quanto aos que dela se aproximam. O fim do filme – e se você está lendo até aqui, nunca viu o filme e não deseja saber o final, que pare diante do próximo travessão – mostra que, separadas, jamais houve duas irmãs. Uma morreu na cirurgia, e apenas uma sobrevive, “ganhando” para si também a personalidade da outra, que não a cansa de apavorar e de pôr em risco sua vida social. Bela metáfora essa para o próprio cinema de Brian De Palma. Pois os detratores de seu cinema só encaram seus filmes do ponto de vista das gêmeas separadas, onde existe um cinema clássico do qual se apropriar (uma gêmea siamesa social e bonitinha) e um cinema maneirista, malévolo/mal-intencionado na apropriação e que se esconde fingindo ser um outro. Ao colocar as duas num mesmo e único corpo, Brian De Palma responde conteudisticamente melhor do que ninguém a sua forma: fazer um cinema do pós- é fazer um cinema da separação siamesa nunca exatamente bem-sucedido, em que um jamais deixa de se confundir no outro, em que o amor pelo classicismo jamais deixa de ser assombrado pela idéia de que esse mesmo classicismo já não é mais possível, e que toda a arte que se pode fazer a partir de então é a partir desse cinema (tomando-o como matriz) e ao mesmo tempo questionando esse cinema (daí os sempre complicados enredos de De Palma em que uma imagem nem sempre é uma imagem, ou é quase o inverso de uma – ela mais engana do que esclarece). Para cada Danielle-Hitchcock há uma Dominique-De Palma, sorrateira, que amedronta. Ou, antes, é a própria idade do cinema, mais do que os realizadores. Fechado o tempo do cinema clássico, resta ao cinema do maneirismo fazer o balanço. Contra a ingenuidade e a frontalidade do primeiro período, o segundo é auto-consciente, referencial e fetichista.

No primeiro, a imagem vale pela realidade (e, nos mais realistas, pode até corrigi-la); no segundo, a questão é de saber se ela só deve deslumbrar (o apuro visual de Brian De Palma é algo dentre as coisas mais deslumbrantes do cinema) ou também deve problematizar essa imagem (o que filmes como Blow Out, Olhos de Serpente ou o próprio Femme Fatale não cansarão de fazer). Em Sisters. Brian De Palma faz seu primeiro grande filme e ao mesmo tempo sua Arte Poética.

MakingOff

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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