O dia de Joyce

O dia 16 de junho é conhecido no mundo inteiro como o “Bloomsday”. É o dia, na vida de Leopold Bloom, em que transcorre toda a ação do romance Ulisses de James Joyce, e foi escolhido pelo escritor por ser o dia do seu primeiro encontro amoroso com Nora Barnacle, que viria a ser sua esposa. 

James Joyce é um dos grandes equívocos do mundo da literatura, mesmo tendo sido um escritor de gênio. Não uso o termo “gênio” para dizer que ele era mais inteligente ou que escrevia melhor do que os demais, mas no sentido de que era um desses caras que parecem possessos, parecem possuídos por um espírito, por um gênio ou “djinn” oriental, por um orixá das letras. 

O gênio literário não é apenas o cara que escreve bem. É o que que sacrifica tudo – bem-estar, amor, família, dinheiro, saúde física, sanidade mental – para criar uma obra literária. O gênio, em geral, é aquele cara cuja obra gostaríamos de ter escrito, mas cuja vida não ousaríamos jamais viver.

Por que Joyce é um equívoco? Por muitas razões. 

Uma é a de se insistir nele como um modelo literário, um escritor a ser imitado, um sujeito que reinventou o romance e cujas descobertas precisam ser aprofundadas. Não é nada disso. Joyce foi um sujeito que afastou-se da avenida principal da literatura e abriu por conta própria um beco sem saída. Seu mérito foi criar um caminho só seu. Algumas de suas descobertas literárias podem ser usadas, com moderação. Usá-las em demasia resulta em pastiche, pelo caráter absolutamente pessoal que elas têm. 

A obra de Joyce é um retrato do microcosmo histórico, social e cultural de James Joyce, a um nível de profundidade como poucas vezes um escritor conseguiu. Tentar fazer o que ele fêz, do modo como o fêz, é não entender o espírito do seu gesto libertário. É desperdiçar o heroísmo suicida de seu exemplo: “seja você mesmo, até as últimas consequências”. Seja você. Não seja “James Joyce”.

O culto a Joyce é hoje quase uma religião literária. A editora Naxos Audiobooks acaba de lançar o Ulisses numa caixa com 22 CDs, lidos por Jim Norton e Marcella Riordan, com fotos e estudos. (O preço, para quem se dispuser, é de 149 dólares). 

Na esteira desta fama, surge outro equívoco: o marginal transformado em monstro sagrado; o rebelde erigido em modelo; o destruidor-de-regras que passa a servir de manual-de-instruções. 

Por outro lado, o excesso de interpretações eruditas de sua obra dá a impressão de ser ela uma arca-de-noé de erudição, quando é uma das obras mais intuitivas, menos cerebrais da literatura. Para visualizar quem foi Joyce, leiam os contos de Dublinenses e o romance Retrato do artista quando jovem. A leitura de Ulisses ou Finnegans Wake é um caminho-de-São-Tiago literário. Só vá se achar que a perna aguenta.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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