Supremo cinismo

“Não há cruzada moral que justifique, à luz das garantias constitucionais, a abrupta supressão dos benefícios recebidos de boa-fé durante décadas por pessoas idosas, sem condições de reinserção no mercado de trabalho”

Do voto pomposo e retórico de Gilmar Mendes, nosso Catão de plantão, para restabelecer a aposentadoria especial dos governadores de Estado. Mudou o nome, agora é sinecura especial, pois os destinatários seriam pessoas idosas, incapazes, até inválidos como Paulo Maluf, sem condições de “reinserção no mercado de trabalho”, caso, exemplo, de João Dória, bilionário e ex-governador de São Paulo. Ou do futuro desempregado Ratinho Júnior, nascido rico, colher de prata no mingau e cueiros de seda no fundilho. E de José Sarney há 60 anos desempregado como governador do Maranhão, presidente da República, décadas como senador por dois Estados; também de sua filha Roseana, governadora e senadora. Justa, só a aposentadoria integral só para Roberto Requião, que depois de três mandatos de governador não consegue reinserção no mercado de trabalho. Ele pode merecer pelo desemprego, mas teria que ser punido pela hipocrisia: elegeu-se no primeiro mandato com uma certidão fraudulenta da aposentadoria de José Richa e, ao final do segundo, refestelou-se, esquecido do que fez, na própria aposentadoria: e agora busca uma “reinserção” no mercado de trabalho de governador.

Questão de justiça, uma justiça que Gilmar e seus colegas do STF não garantem a Deltan Dallagnol e a Sérgio Moro, aos quais negam a inserção na política – que em última análise é inserção no mercado de trabalho. Eles não terão aposentadorias de políticos, pagas pelo povo, como a de ex-governadores, ainda que patifes e poltrões. O argumento de Gilmar, compartilhado pelos colegas do STF, é da mais acintosa falsidade, sob o pressuposto hipócrita e escamoteado de que a política é profissão remunerada – com a melhor das carteiras de trabalho – e direito a auxílio desemprego vitalício com equiparação salarial a desembargadores, primos pobres dos ministros do STF. Como na relíquia profana de Eça de Queiroz, o STF restaura santifica e restaura a ignomínia que outrora negou, vista então como veneno destilado do fruto podre das constituições imorais. O tribunal condena – depois de aprovar – como nos desvios da toga de Sérgio Moro do powerpoint de Deltan Dallagnol. A falta que fez ao Brasil uma autêntica revolução, como a francesa, que extinguiu os privilégios da noblesse, tanto a d’épée quando a du robe, as aristocracias da espada e da toga. O STF equipara os políticos sem mandato aos nobres da espada e aos obres da toga.

E o povo que vive com R$ 600 ao mês, esses índios fora da taba de quem se tira a sardinha em lata o salame com alho, como fez Jair Bolsonaro? Ora, o povo que se exploda, que não tem voz mas tem pedras a atirar contra os prédios dos poderes. Ali na epígrafe da frase e foto do filósofo Anatole France. Na época (1844-1924) a frase representou lapidar, ainda que ingênua, definição da Justiça – e por extensão de seus operadores, os juízes, e de seus sustentáculos, os homens de Estado, políticos em suma, ex-governadores sustentados por dinheiro sonegado ao povo. Rasguei meu exemplar de Anatole France, da Abril Cultural. Motivo: mentira, falsidade, ignorância, alienação. Ainda que lido por alguns – um dois, talvez, dos ministros do STF, estes só se servem dele para embelezar argumentos falsos, cínicos, hipócritas e ofensivos ao povo. Pior que isso, inconstantes como as procelas do mar. E depois, sem rubor nas faces, os senhores da toga recriminam – não sem antes aprovar – os “celerados” da Operação Lava Jato. O chanceler Bismarck tinha medo que os alemães descobrissem como eram feitas as leis e as salsichas. O brasileiro só descobriu neste mês como são feitas nossas salsichas. As sentenças e as leis ficam para o século 22.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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