A Fifa não gosta de futebol

A Copa poderia ser sempre em Las Vegas

Copa de 1970 é nossa Capela Sistina. O gol de Carlos Alberto Torres na final contra a Itália tem a força daquelas obras de arte que suspendem o tempo. Tudo ali contribui para isso. As passadas largas de Clodoaldo, a bola de gomos brancos e pretos, a atmosfera do monumental Estádio Azteca, a rede que estufa com vontade num chute tão forte que a bola flutua rasante sobre a grama.

Todos os símbolos, as atmosferas, as imperfeições são importantes ali. De um jeito inexplicável, a soma disso tudo acaba conferindo alma ao esporte. E é isso que faz com que o futebol seja futebol.

Na Copa de 1978, na Argentina, o futebol também está na tempestade de papel picado que cai daquelas arquibancadas pulsantes. Naquelas balizas com a base pintada de preto.

A rede de formato hexagonal em 1990 era um charme. Os estádios adaptados de outros esportes americanos trouxeram uma atmosfera única para a Copa de 1994.

A Copa do Mundo também é feita da cultura de cada país sede. O futebol é um caldeirão de símbolos, povos, cores, superstições, religiões e maluquices.

Mas a Fifa não gosta de futebol. Padronizou os estádios, as balizas, os torcedores endinheirados e instagramáveis. Tudo é industrial, pasteurizado. Até a iluminação fria e impessoal faz com que cada jogo pareça uma partida de videogame.

Hoje um jogo no Qatar é igualzinho a uma partida na Rússia ou no Brasil.

O circo itinerante da Copa do Mundo poderia trazer benefícios civilizatórios para os países sede. Mas o que ocorre é o contrário. A Fifa atua como um colonizador: suga o dinheiro dos impostos, impõe regras autocráticas e constrói uma cidade cenográfica com data de validade que só deixa miséria para trás. E ainda proíbe manifestações contra a homofobia, pela liberdade, qualquer coisa que traga vida à obsessiva pasteurização com fins lucrativos.

Pior do que o 7 a 1 foi o Maracanã perder sua atmosfera mística e imponente de catedral para virar uma asséptica arena. O que restou das Copas da Rússia e da África do Sul?

Deixo aqui uma ideia para a Fifa: dentro dessa lógica, porque não fazer a Copa do Mundo com residência fixa em Las Vegas? Poderiam arrendar os caça-níqueis, construir cenários que simulem o Taj Mahal, as pirâmides, a Capela Sistina.

Ainda assim, apesar da Fufa, quando a bola rola, a gente começa a torcer (cada vez menos, é verdade). É que o futebol é um jogo apaixonante. Pena que a Fifa não gosta dele.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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