O lado oculto e bandido de falsas celebridades

Numa redação que tivesse um profissional como José Silveira na chefia, Olavo de Carvalho seria apresentado aos leitores num obituário sem disfarces, com todo o seu rico e variado potencial de um grande canalha, o que também era, mas de um versátil manipulador a serviço da extrema direita 

Ele não foi um filósofo, muito menos um escritor, um ideólogo, um astrólogo, sequer um guru de meia tigela, atributos e qualidades que lhe foram fartamente atribuídos desde que apareceu em cena, patrocinando a arrancada conservadora e neofascista de Bolsonaro. Com sua morte, o mistificador Olavo de Carvalho entrará para a história brasileira deste século no papel de um charlatão inescrupuloso ou de um sujeito de extrema direita que combateu seus adversários de esquerda com xingamentos, ameaças e provocações feitas de maneira galhofeira, nem nenhuma comprovação?

Não há registro de traços de caráter e de ética em sua personalidade. Sempre se apresentou em cena como um personagem sem compostura, meio cafajeste, agressivo. Construiu sua fama sem se preocupar com a veracidade dos fatos, como se fosse uma espécie de influencer livre para dizer as besteiras que bem entendesse, sem que fosse questionado. Qual de suas imagens ficará para a História?

O tempo dirá, mas, pela cobertura que recebeu dos veículos de comunicação, que acompanharam seus passos e destemperos no dia a dia, sempre com grande atenção das redes, temo que sua imagem suscite dúvidas, no mínimo. Seu verdadeiro papel, de um hábil agente provocador e referência ideológica a serviço da extrema direita, com forte influência na composição do governo Bolsonaro, não foi devidamente explicitado pelos veículos impressos.

Sua morte foi saudada com entusiasmo nas redes sociais dos grupos de esquerda. Para a mídia, o impacto do óbito foi assimilado sem a elaboração de uma cobertura de maior profundidade, cuidadosa com o registro que o jornalismo deixará para a História. Momento para que Olavo de Carvalho passasse pelo crivo de um obituário que levantasse sua origem, seu passado, sua formação. Suas falsas acusações. A falta de base educacional e científica dos cursos online de ideologia e anticomunismo. Um material jornalístico que desmistificasse o engodo e o amadorismo de suas pregações.

Não seria difícil desmascarar o farsante. Com uma expressão cínica estampada no rosto, Olavo de Carvalho se comportou o tempo todo como um curandeiro que iludia a boa fé das pessoas, usando o falso título de “filósofo”. Não é que tenha havido censura, mas os jornais não usaram os meios que possuem nem tiveram a coragem de encarar a direita conservadora dominante. O jornalismo envelheceu, apequenou-se, como escreveu a colunista Marilene Felinto na Folha.

Numa redação que tivesse um profissional como José Silveira na chefia, Olavo de Carvalho seria apresentado aos leitores num obituário sem disfarces, com todo o seu rico e variado potencial de um grande canalha, o que também era, mas de um versátil manipulador a serviço da extrema direita.

Com seu jeito tranquilo, o gaúcho Silveira começava a leitura do jornal pela página do obituário. A primeira vez que o vi fazer isso, em sua sala, na Sucursal Rio da Folha, achei estranho, mas depois compreendi. Ele dizia que nessa seção não podemos errar. Seu modelo era o jornalista Alden Whitman, redator de obituários de The New York Times, um repórter supercriterioso que corria contra o relógio diariamente para fechar a tempo seus longos textos que anunciavam a morte de celebridades ou pessoas desconhecidas.

Whitman ficou conhecido na imprensa e fora dela depois que o jornalista Gay Talese, considerado um mestre da Reportagem, fez o seu perfil no livro Fama & Anonimato, o lado oculto de celebridades (Cia. das Letras). O perfil de Talese tem o sugestivo título de Sr. Má Notícia.

“Ali pelo meio da manhã, ele já está em sua sala dando telefonemas, folheando jornais e recortes. Há 2 mil obituários preparados com antecedência nos arquivos do Times. Whitman conhece todos eles. Seu objetivo é abordar a vida do morto com lucidez, precisão e objetividade. Às vezes, chega a torcer pela morte de um deles. O obituarista era um profissional qualificado e respeitado na redação, com formação de repórter. E um dos melhores salários de sua editoria.”

 Segundo relata Talese em seu perfil, o redator sabe que é lido com atenção por leitores especiais, alguns com uma curiosidade mórbida, outros que procuram apartamentos vagos e pessoas interessadas em entender os mistérios da vida.

No obituário do Sr. Má Noticia estava escrito: “Alden Whitman, da redação do NYTimes, que escreveu centenas de obituários sobre as mais destacadas personalidades mundiais, morreu subitamente na noite passada, em sua casa, de um ataque cardíaco. Ele tinha 52 anos…”

Nas mãos desse especialista em más noticias, a morte do negacionista Olavo de Carvalho seria mostrada aos leitores com todos os lados de sua personalidade, num texto objetivo e passível de comprovação. O “autoproclamado” filósofo nasceu em Campinas (SP) e morreu nos Estados Unidos, na Virgínia, onde foi enterrado, aos74 anos. De complicações decorrentes da Covid-19.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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