Terrible forever

Mordi o braço dele tão forte que tive que arrancar umas peles mortas dos dentes

Minha filha estava comendo legumes quando, na mesa ao lado, um casal começou a oleificar os beiços em gordas batatas fritas.

Ela apontou para os palitos reluzentes e, ao notar que não poderia obtê-los, tacou o prato nas pessoas e promoveu tamanho escândalo no restaurante que tive que abandonar meu almoço quase intacto e levá-la embora. Uma senhora foi atrás de mim, para me trazer os óculos que deixei para trás, e falou: “Tá tudo bem, é só o terrible twos”.

Mais tarde, em casa, sem que meu marido tivesse feito nada de muito grave (apenas tenho certo horror quando ele me diz que está cuidando da nossa filha e eu a encontro tentando abrir o lixo do banheiro), me imaginei golpeando sua jugular com um garfo.

O sangue jorrado eu usaria para escrever na parede algo como “eu tô cansada porra morte à sociedade”, e ele então me perguntaria que merda é essa e eu responderia que estou vivendo meus terrible forties.

No fundo, as pessoas são ótimas e viver é uma maravilha. Minha mãe, que desde que virou avó se transformou numa fiscal de “qualquer coisa” na minha casa (se não encontra milho orgânico na minha geladeira acha que estou torturando minha filha com escandaloso descaso), tornando a minha vida uns 98% mais infernal do que a vida de qualquer ser humano pode ser, certamente não faz isso por mal.

Ela está vivenciando seus terrible seventies. Meu pai, que desde que se imaginou perdendo a virilidade começou a dizer todos os dias que prefere morrer e que é melhor morrer e que viver para quê, não tem culpa de nada, ele está vivenciando seus terrible eighties.

Uma vez, quando eu namorava o Guilherme, eu mordi o braço dele tão forte que depois tive que arrancar umas peles mortas dos meus dentes com fio dental. Foi um impulso. Eram os terrible twenties.

Em outra ocasião, quando eu namorava o Daniel, eu chutei a lataria de seu carro tantas vezes que, depois, quando já estávamos numa boa, apelidamos algumas manobras sexuais de “martelinho de ouro”. Nada disso era responsabilidade minha. Eram os terrible twenty-fives.

Teve outra ainda que eu apareci de surpresa no hotel de um paquera e fiquei correndo atrás dele nua e dizendo: “Calma, eu só quero conversar”. Eram os terrible twenty-sevens.

Certa feita, eu estava trabalhando até tarde e, movida por profundo tédio e uma vontade gigantesca de me livrar daquela profissão de publicitária, resolvi subir na mesa de um chefe, chutar alguns papéis, levantar minha saia até o pescoço e mostrar a bunda para um circuito de câmeras. Só consegui que o guardinha da noite passasse a me cumprimentar dizendo “eita!”. Eram os terrible thirty-ones.

Penso que um marido, vivendo seus terrible thirty-eights, ter deixado sua esposa amamentando em casa para apertar umas tetas alheias (peitos esses vivendo seus terrible forty-twos) tampouco tem culpa de alguma coisa. Penso que você, vivenciando esse terrible 2019, não pode ser incriminado por escrever “filho da puta” na rede social do coleguinha.

Penso que o eleitor de Bolsonaro se animou demais com o terrible 2013 e não entendeu nada do que aconteceu naquele ano (nem depois, e muito menos antes).

O cara da fileira 8D do voo que saiu de Lisboa para São Paulo, na madrugada do último domingo, não reclamou do choro da minha filha porque é um desgraçado que nunca foi pai, que dirá filho, ou um machista nojento que merece uma verruga em chagas nos olhos e outra purulenta no ânus. Ele apenas está passando por seus terrible fifty-fours. É ótima pessoa.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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