‘Terrivelmente’ cristãos

Há governantes que gostam de impor seu poder pelo medo

No começo deste ano, ao assumir a pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves declarou que o Estado podia ser laico, mas ela era “terrivelmente cristã”. 

Jair Bolsonaro gostou da expressão e, em julho, durante um culto evangélico, disse que ele pretendia nomear, para o Supremo Tribunal Federal , um juiz “terrivelmente evangélico”.

O que significa ser “terrivelmente” cristão ou evangélico?

Há governantes que gostam de impor seu poder pelo medo. Mas será que há cristãos que querem mesmo ser medonhos?

Muitos cristãos sentirão repulsa diante da ideia de afirmar a sua fé pelo medo que poderiam incutir nos outros. Entendo, mas o cristianismo “terrível” não é uma invenção de Damares e Bolsonaro.

Os cristãos, os judeus e os islamitas são exclusivistas, ou seja, adotam o Antigo Testamento, no qual Deus proclama: não terás outros deuses além de mim.

Agora, o judaísmo não se tornou missionário por isso. A ideia é: meu Deus é o único verdadeiro, os outros podem acreditar no que quiserem —eventualmente, veremos no fim quem tinha razão.

O cristianismo, ao contrário, tornou-se imediatamente missionário, como se a ideia de que só nosso Deus é o verdadeiro acarretasse o dever moral de convertermos a todos os que veneravam outros deuses. O Islã tomou um caminho parecido, com a consequência que as duas religiões parecem estar em guerra até hoje.

Duas observações: 1) É sempre sábio desconfiar dos que querem nosso bem —quer estejam vestidos de cruzados, de comunistas ou de pastores.

2) O caso dos judeus mostra que a crença que nosso Deus seja o único verdadeiro não nos dá necessariamente o dever e o direito de convertermos o mundo a ferro e fogo.

O cristianismo atribuiu a si uma vocação missionária universal ao lutar para se tornar religião oficial do Império Romano. Mas essa circunstância não explica por qual razão interna (e não só de expansão pelo mundo) os cristãos se tornaram logo “terríveis”. Por que precisaram que todos os outros adotassem as suas crenças e as suas regras de comportamento?

Talvez haja, nos anseios missionários, uma vontade de fazer o bem. É possível. Mas os anseios missionários, sobretudo quando se tornam impositivos e violentos, mal escondem a boçalidade. O que é a boçalidade? Nenhum cristão consegue controlar seus desejos “pecaminosos” e as dúvidas de sua fé.

Quanto mais os desejos e as dúvidas o pressionam, tanto mais ele se torna boçal, ou seja, tenta reprimir nos outros tudo o que ele não consegue reprimir nele mesmo.

boçalidade cristã tem uma longa história, que, aliás, deveria ser contada nas salas de aula (isso, se as aulas não fossem lugares de doutrinação cristã e boçal, justamente). Durante o primeiro milênio, a boçalidade se encarregou de exterminar e apagar um outro cristianismo, menos ou nada boçal, que poderia ainda ser o nosso (para começar, veja M. Onfray, “O Cristianismo Hedonista”, ed. Martins Fontes).

No mesmo período, a boçalidade também destruiu a cultura clássica greco-romana (veja C. Nixey, “A Chegada das Trevas – Como os Cristãos Destruíram o Mundo Clássico”, ed. Desassossego).

E a boçalidade vingou quando, na Renascença, a razão começou a semear dúvidas. Será que a terra é plana ou redonda? Será que está mesmo ao centro do universo? Os boçais foram deveras “terríveis”: para afastar as dúvidas que surgiam neles mesmos, eles se puseram a queimar bruxas e hereges.

A ministra Damares se preocupou recentemente com a possibilidade de que uma feminista se masturbasse com um crucifixo. 

Há 400 anos, numa praça de Toulouse, um jovem filósofo, Giulio Cesare Vanini, foi executado por pensar que há leis da natureza e que talvez haja evolução das espécies. Antes de ser estrangulado e queimado (e que suas cinzas fossem no fim dispersadas), o algoz lhe cortou a língua, culpada por falar demais.

Quase sempre, nos últimos momentos de um herege, havia um boçal “terrível” que lhe estendia um crucifixo, para que fosse a última coisa que o supliciado contemplasse. Não é improvável que o sangue de Vanini tenha espirrado no crucifixo. Se isso aconteceu, acredito que o sangue de Vanini sujou o crucifixo muito mais profundamente do que a lubrificação de qualquer feminista imaginada por Damares.

Sei, a história de Vanini foi 400 anos atrás…o tempo passou, não é? Mas a clínica mostra que os boçais continuam capazes de tudo para evitar  encontrar seus próprios demônios.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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