Janelas e fugas

Venho, há tempos, formatando um conceito e um paralelo mais elaborados dessa associação. Janelas e fugas têm a ver com projeções, com anseios, distrações; Têm a ver com viagens e com as estações e suas escolhas: de onde partir? Onde aportar?

De um lado, o presente confunde-se e carrega seu passado. Do outro, emerge do enquadramento da paisagem o vislumbre de um futuro alcançável pelos passos e sinalizações que se apresentam e que presenteiam pela soma evolutiva galgada até ali.

Janelas inspiram e arrancam suspiros entranhados na alma da gente; Discretas ou indiscretas, são humanamente sinceras em seus murmurinhos, lamentos e cochichos. Também assoviam canções, que não têm letra, nem sempre fazem sentido, mas que carregam o vento dos ares de uma familiaridade incompreendida e inesquecível. Porque é cercada de mistérios e de oportunidades para a mente vasculhar, tecer descobertas ou alçar voos criativos, com coração acelerado e convidativo. Janelas transportam e libertam emoções aprisionadas por receios, incertezas, inseguranças e cômodas inconsciências.

A paisagem que corre veloz do lado de fora sempre me convida a brincar de se perguntar: se eu parasse o veículo neste ponto aleatório da estrada, que cabe na ponta e na distância do dedo, e me embrenhasse na paisagem retratada neste restrito instante, que destinos se descortinariam de tal impulso arbitrário? Quanta vida e informações se agregariam, quantas apropriações e pertencimentos derivariam do que parece ser um gesto impensado, tolo, inconsequente ou até mesmo descabido?

Janelas escondem e revelam uma vida que, lá fora, passa de bicicleta, em carros de bebês, carrinhos de catar papel ou conduzindo animais de estimação. Ela só passa, isolada ou repartida, ao tempo e à percepção dos olhares curiosos e encantados que a observam. Simplesmente passa. E as janelas captam, congelam, armazenam com suavidade esses registros.

Se fechar meus olhos, posso imaginar que, depois da moldura da janela do Casarão, o passado ainda está vivo e que, à surdina, rende homenagens a esse presente-futuro que o vinga e lhe cura algumas feridas. Outras permanecem e repartem missões e responsabilidades. Tudo se resume em ser semente em um solo fértil de resgates, aprendizados e de evolução.

Quando não estiver mais perto, as janelas do Casarão se fecharão e nem verei isso tudo se calar. Só voltarão a me contar histórias, emitir sons familiares e a projetar luzes e sombras na minha imaginação quando, enfim, estiver novamente em sua presença. Até que esse dia chegue, habitaremos nossos modos de espera combinada, residiremos em nossos silêncios, transbordando cumplicidade, significados e suaves interrogações.

Vestirei o olhar de uma doce tristeza, mas também da alegre saudade que só os encontros e reconhecimentos da alma proporcionam. E o tempo se apresentará leve, delicado, quase impreciso e dissipado na própria ilusão de si mesmo. Paralisarei a cena, assim como ela, espelhada, neutraliza minhas reações.

Janelas e fugas ainda pairam como uma névoa confusa e apegada de sensações de conforto e de paz. Talvez, quando me deparar com o real significado dessa relação, seja a hora de passar o ferrolho e aterrar os pés na realidade, sem desviar a atenção da estrada percorrida e nem atribuir tamanho peso aos acasos, que, assim como o tempo, sequer existiram de fato. Esse tempo… Ah! A gente conta e dissolve em milésimos de desejos e reconhecimentos, guardados em outras metafóricas janelas. E ele sempre escapa por frestas teimosas, de insistentes apegos e afinidades. Imagina, você, agora, quão intenso e corajoso seria, se fosse real!?

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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