A voz

Estava bem acordado. Não era mais sonho.

Aquela foi a primeira vez que ouviu a voz de Helena, limpa e clara, sem a interferência de aparelhos, sem passar pelo filtro da tecnologia ou abafada pelas máscaras de proteção individual, apenas falada. A distância permitiu e o vento cooperou para que chegasse livre e impactante na cabeça dele. Até segurou a respiração por alguns eternos segundos, como se isso tivesse o poder de ampliar sua capacidade auditiva e levar aquele som a encontrar de imediato, como que instintivamente, o caminho para alcançar e realimentar de chamas um braseiro dentro do peito de Henrique.

Em um primeiro momento, sentiu-se anestesiado e assombrado pela surpresa da ocasião, mas, passado o susto, ele voltou para seu estado naturalmente patético. Via-se assim desde que a conheceu, como se, de uma maneira prazerosa, sim, tivesse perdido ou abandonado o controle de suas emoções e dos cinco sentidos físicos. Não era mais a figura, cuja imagem tinha sido construída e lapidada para o aceite social. E não havia problema nenhum em ser assim, uma vez que, desde que tomou conhecimento de si, essa personificação era sua verdade e condizia com o padrão que estabeleceu para perseguir e para medir ou ajustar os passos que deveria galgar nessa trajetória toda própria.

Trazendo sua naturalidade e diferenças, porém, Helena chegou para bagunçar esses padrões. Sem a intenção de querer ou mover uma única palha, ela provocou nele não apenas questionamentos que, bem no fundo, ele sempre se fez, mas lhe municiou da coragem de enxergar e de encarar alguns fantasmas, sombras e tantas dissimulações desconsideradas no dia a dia, soterrados sob o tapete das suas certezas e atrás dos escudos que ergueu para a autoproteção. Ele só conseguiu se olhar por inteiro e compreender uma série de incômodos inconscientes, que desprezou por muito tempo sem atribuir grande importância, depois que a viu também na sua integralidade. Agora, aqueles estranhamentos e insatisfações arrastavam um peso e emitiam um barulho que tornavam tarefa impossível ignorá-los.

Por esse conjunto de sensações é fácil compreender o tamanho do impacto daquela voz, símbolo universal de chamado, na alma e na realidade daquele homem. O mais incrível foi que o som não lhe pareceu nem um pouco estranho. Inundou seu espírito de uma saudade transbordante e arrancou de dentro de si lágrimas que se alternavam, em velocidade que não consegue aqui medir para contar, entre a tristeza gritante da vontade de se aproximar e a alegria silenciosa por ela existir e preencher de leveza seus dias mais nublados. Até sorriu a esse pensamento. Reconhecia naquele som uma familiaridade aconchegante e assustadora. Era uma espécie de caneta marca-texto que, em suas cores berrantes, assinalava o que mais importa, que não pode ser esquecido ou mesmo que precise ser alterado, inclusive nas suas mais impercebíveis entrelinhas.

Uma voz e meia dúzia de palavras pronunciadas para expressar um ordenamento qualquer, uma situação simples, como um mero cumprimento na rua – “Oi, tudo bem? Como vai?” -, teve um poder impressionante no seu autoconhecimento e no redirecionamento dos rumos traçados. Ao menos, no questionamento dessa possibilidade. Podia-se afirmar, então, um homem preparado para viver a vida e só neste momento é que percebeu que anteriormente seria enganoso pensar-se assim. Aquelas afirmações engessadas e condicionantes de antes já não pareciam mais tão rígidas e, com os anos, a maturidade e a sabedoria também lhe esclareceram e lhe oportunizaram as ferramentas para distinguir as condições, equilibrar os recursos e transitar com cautela, mesmo que inserindo elementos novos e arejando seu espírito a cada movimento na direção de encontrar suas realizações.

A primeira obrigação que tinha de cumprir era consigo mesmo. Era esse autoamor que aparecia impresso na descrição da fatura de devotar pensamentos e sentimentos, ao dormir e logo ao despertar, àquela criatura que suavemente se impôs na sua intimidade, naquele lugar reservado em que ele se encontrava consigo mesmo e que mais ninguém tinha acesso ou permissão para entrar. Ela morava ali dentro. Era lá que ele a preservou e que a cultivava em segredo, com todo zelo e o máximo de cuidado. Como parte dele mesmo, de ser completo.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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