Vai passar? Tem certeza?

Cada paralelepípedo do Largo da Ordem ressoa a letra da canção que Chico Buarque de Hollanda, muito inspirado, escreveu para compor uma dobrada de sucesso com Francis Hime, lançada há 37 anos. Mal sabiam que, no Carnaval pandêmico de 2022, Curitiba vestiria a carapuça do sanatório geral, mas em outra passarela de alegorias: a da cena política!

Cabe aqui um parêntese, antes de enveredar o texto para esse campo minado e tão enviesado ou castrador de contextos quanto as editorias internacionais de noticiários daqui ao reportarem conflitos nos países dos outros, quando não regurgitam com farofa as versões das grandes redes corporativas e seus interesses comerciais. Nunca se viu tanto jurado disposto a julgar quesitos e categorias sobre as quais não entende “lhufas” para, no final das contas, sua contribuição a mais ou de menos acabar por definir as escolas que irão desfilar no final de semana seguinte sobre o salto alto de um campeonato tão duvidoso quanto arbitragem de V.A.R. para os escudos mais pesados em campo.

Mas ainda nem abri o ponto de destaque anunciado… Cabe ressaltar que Curitiba tem uma história bonita e emocionante sobre o entrudo, a festa popular, que dribla obstáculos desde sempre, preconceitos, e que afirma sua identidade o tempo todo. Driblar não é um termo sem propósito em um ambiente que desfila de mãos dadas com outra paixão nacional, a do futebol. A Curitiba do samba no pé e da bola na rede tem memórias preciosas para contar, com páginas amareladas de sorrisos, de extroversão, de muito trabalho, incremento de renda e de valor cultural inestimável. Fora os jeitinhos e a malandragem nossa de cada dia.

Como no restante do país, esse caldo cultural é engrossado com todos os temperos da formação da nossa identidade de povo e da brasilidade que corre alucinada nas veias da nossa gente, com doses, claro, das saborosas imperfeições de que é feita uma realidade. Talvez, colecione torcidas de narizes mais exigentes, requintados e hipócritas justamente por desmascarar que o curitibano tem também (- Pasmem! Jesus Cristinho!) raiz essencialmente popular, negra, alegre, verdadeira e humanamente torta.

Dito isto, a ofegante epidemia do momento acontece mesmo no palco da política, que sapateia e dá bizarras piruetas de contentamento em nome de salvaguardar suas tenebrosas transações e de perpetuar um tempo com muitas páginas infelizes, mantenedoras de confortos e que são seletivas na distribuição das benesses e das oportunidades que a cidade tem para oferecer. Aos barões famintos e napoleões retintos da capital paranaense, séculos e séculos depois dos fatos que inspiraram a genialidade no repertório do Chico, a parte que ainda lhes cabe nesse latifúndio de segregação é errar cegamente pela vastidão territorial do município, levando pedras, feito penitentes, para erguer estranhas e impenetráveis catedrais. Essa realidade fugiria à compreensão de outro cantador, o Zé Geraldo, quando imortalizou sua interpretação de “Cidadão” do Lúcio Barbosa, dizendo que o padre lhe deixava entrar no recinto, construído pelo trabalho de suas mãos e com o suor de suas energias, e que o próprio Nosso Senhor lhe ordenava para deixar de tolices e não se deixar amedrontar por esse contexto de exclusões e de seletividades.

Nessa avenida, que toca um samba nada popular, onde ainda sangram nossos pés e muito sambaram nossos ancestrais, a evolução da liberdade também tem deadline apertadíssimo: só até o dia clarear! Ou seja, até o momento em que a Câmara Municipal erguer o seu estandarte de sanatório geral para julgar como crime hediondo uma “pedalada” que ela arrumou para expurgar da bateria os percussionistas fora do tom ou aqueles passistas “diferentes”, “estranhos”, que incomodam e questionam a “harmonia” das práticas segregadoras, higienistas e hegemônicas, disfarçadas de moral e dos tais bons costumes. De lambuja, miram aqui para acertar lá adiante, no topo das pesquisas de intenção de voto para o pleito deste ano.

“Fé cega, faca amolada”, canta outra criação artística, só que brotada da mente dos mineiros que vieram lapidar esta nossa prosa. Não tem como aplaudir, pois não se trata de um desfile capaz de levantar a arquibancada por sua beleza e exuberância, mas de um cortejo perverso de idolatria da expropriação da alma e da esperança da nossa gente, já escanteada para a periferia da periferia de qualquer composição que entoe e verse sobre os pesos e as medidas na balança da garantia de direitos. Barões famintos e napoleões retintos são representados nesse enredo por um réu que, mais do que expressar sua natureza, significados próprios e suas inquietações, é porta-bandeira de uma história e carrega um legado cultural popular único, apesar de retratar em preto e branco a esmagadora maioria da nossa gente, que dorme distraída, sem perceber que está sendo brutalmente subtraída. Mais uma vez, hoje e sempre. Para esse carnaval de hipocrisias, a nota é zero!

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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