A última canção dos Beatles 

Este título está um pouco melodramático, mas é apenas para servir de clickbait (isca de cliques) e para marejar os olhos dos mais suscetíveis. Sendo o Mercado o que é, e sendo os Beatles o que foram, não duvido que daqui a cinco ou dez anos apareça alguma nova tecnologia capaz de fazê-los não apenas cantar juntos de novo, mas quem sabe até compor juntos.

Nunca duvidem dessa junção: Mercado & Tecnologia. É uma dupla mais inventiva do que Lennon & McCartney.

Nada mais adequado do que a última canção que reúne os quatro Beatles (dois deles já mortos) seja uma reconstrução eletrônica de uma gravação caseira. “Now And Then” foi uma fita demo gravada por Lennon em seu apartamento no edifício Dakota. Não pôde ser aproveitada para o projeto Anthology, de 1995, por problemas técnicos. Na época, era impossível eliminar os ruídos e fazer a separação entre voz e piano. Problemas que só puderam ser resolvidos agora.

Dizem que McCartney deu uma mexida na canção, eliminou trechos, cortou e emendou pontas. Está certo. Era assim que os dois compunham. Ninguém compõe versões definitivas das canções; chega-se a elas por aproximações sucessivas.

Esta música, lançada curiosamente no Dia de Finados (2 de novembro de 2023), vem se juntar a dois projetos excepcionais e recentes. O primeiro é o documentário Get Back, em três partes, dirigido por Peter Jackson a partir das gravações do álbum Let It Be. O segundo é a série McCartney 3, 2, 1, em que Paul e o produtor Rick Rubin conversam sobre a música criada pelo grupo.

Antes de ouvir a música, vale a pena ver o curta de 12 minutos onde se narra a sua produção:

“Now And Then” não se parece muito com o Lennon da época dos Beatles. É tipicamente o Lennon do Edifício Dakota em seus momentos mais introspectivos e melódicos. Lembra certas faixas de Walls & Bridges (“Bless You”) ou Imagine (“Jealous Guy”). Canções lentas, puxadas pela melodia do piano, distantes do Lennon roqueiro de guitarra em punho.

Numa entrevista, perguntaram a Lennon qual era seu principal talento como músico. Ele disse: “Sou bom na guitarra-base. Sei fazer uma banda pulsar.”

“Yesterday” foi uma virada-de-esquina na obra dos Beatles, porque permitiu a Paul McCartney desdobrar-se em “homem dos sete instrumentos”, indo para além do esquema guitarra-baixo-bateria e passando a utilizar todos os recursos que herdou de seu pai, Jim McCartney, ex-líder da “Jim Mac’s Jazz Band”. Sem essa virada, não haveria canções como “She’s Leaving Home”, “Honey Pie”, “Martha My Dear”…

Uma coisa que perdemos de vista às vezes é que grande parte dos grandes compositores de rock se viravam muito bem ao piano.  As composições de Lennon pós-Beatles denotam essa convivência com o instrumento. “Now And Then” pertence a essa vertente lírica, melódica, intimista, sem a preocupação de “fazer uma banda pulsar”. Uma espécie de “lado B” do Lennon eletrificado e explosivo de “Whatever Gets You Through The Night”, “Instant Karma”, “Cold Turkey” e por aí vai.

Um aspecto interessante desta “nova-velha” canção é sua letra – em princípio uma letra de amor, sem novidades poéticas. Mas dadas as circunstâncias excepcionais em que a canção foi recomposta e lançada ao público, é possível fazer uma leitura metalinguística de seus versos iniciais.

A letra em inglês diz:

I know it’s true, it’s all because of you

And if I make it through, it’s all because of you

And now and then, if we must start again

Well, we will know for sure that I love you

Basta deslocar esse “you” que dramaturgicamente se dirige à mulher amada, e imaginar que essa voz é a voz de Lennon, dirigindo-se aos seus três parceiros.

Eu sei que é verdade, é só por causa de vocês.

E se eu conseguir, é só por causa de vocês.

E, tanto agora quanto naquela época,

se formos recomeçar,

bem, saberemos com certeza que eu amo vocês.

“Now and then” é uma expressão coloquial que significa “de vez em quando”, “vez por outra”, etc., mas também “agora e naquele tempo” – ou seja, no momento atual (apenas dois sobreviventes, com mais de 80 anos) e naquele tempo em que eram jovens e Beatles. Um tempo que o próprio George Harrison celebrou na canção “All Those Years Ago” (1981).

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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