A vitória da estupidez

A verdade é que boa parte do mundo, hoje, está entregue a déspotas, palhaços, aventureiros desqualificados que se impuseram pela força ou chegaram ao poder pelo voto irracional de uma população descrente da política. Uma crise de representatividade que leva ao poder um comediante, um agente da KGB, ameaça trazer de volta o palhaço Trump e, aqui no Brasil, tirou do ostracismo um capitão ignorante e mal-intencionado

Não importa o que aconteceu, o que está acontecendo, o que vai acontecer – os russos podem ter avançado, podem ter tomado Kiev; a Ucrânia, quem sabe, resiste heroicamente ou talvez tenha se rendido. A verdade é que esse conflito no Leste Europeu, uma das maiores investidas militares de um país contra outro desde a Segunda Grande Guerra, há 80 anos, consagra – e esta é a realidade incontestável – a vitória da estupidez humana.

Quantas guerras eclodiram desde o início do século passado, ou mesmo antes? Quantas invasões, ocupações, intervenções militares aconteceram por parte das grandes potências sem maiores explicações ou justificativas – do Vietnã ao Afeganistão, do Panamá ao Iraque – só para citar as mais recentes? E o que a humanidade aprendeu com todas elas? Apendeu apenas a manifestar o horror diante da insignificância da vida alheia e, ainda assim, se entregar a uma insaciável e criminosa sede de poder que justifica todo tipo de violência para subjugar aqueles que julga inimigos.

Especialistas se sucedem nas páginas dos jornais, nas telas das tevês e no volátil universo da internet para analisar as razões históricas e as consequências danosas dessa guerra para todo o planeta. Em comum, uma sentença condenatória inquestionável. A Rússia jamais poderia ter desrespeitado a soberania nacional ucraniana e invadido o país, mesmo que argumente com os arsenais da Otan que se espalham ameaçadoramente pela vizinhança. Deveria contar até três. Se precisasse, que contasse outra vez.

Não há santo nesse conflito. Putin, o senhor da guerra formado nos porões da KGB, é o autocrata que se perpetua na presidência da Rússia e sonha com a reconstrução do império soviético. Biden, o vacilão, segundo os próprios norte-americanos, movimenta-se com cautela e hesitação no tabuleiro da guerra, limitando-se a anunciar sanções econômicas e a animar o mercado das armas. Como Macron e Scholz, que procuram luvas protetoras inexistentes para botar a mão no vespeiro, temendo que fiquem sem gás. E Zelenky, o teimoso comediante presidente da Ucrânia, lamenta o que chama de isolamento, mas não se entrega. À proposta americana de deixar o país, reagiu indignado: “A luta é aqui, eu preciso de munição, e não de uma carona”.

Ninguém tem razão, todos têm razão. É fato que acompanhamos essa guerra pela ótica do Ocidente, invariavelmente as notícias partem da Casa Branca, até porque, reconheçamos, a cortina de ferro continua fechada naquele lado do mundo. Mas nada tem sido mais doloroso do que assistir às imagens que chegam das agências internacionais. Famílias desestruturadas, pessoas desesperadas, uma fuga em massa e sem destino. Zelensky distribui armas e coquetéis molotov para a população civil. E proíbe que homens entre 18 e 60 anos deixem o país. O que gera cenas cruéis e comoventes. Pais se despedem de mulher e filhos para uma luta aparentemente inglória. Não sabem se irão revê-los.

A verdade é que boa parte do mundo, hoje, está entregue a déspotas, palhaços, aventureiros desqualificados que se impuseram pela força ou chegaram ao poder pelo voto irracional de uma população descrente da política. Uma crise de representatividade que leva ao poder um comediante, um agente da KGB, ameaça trazer de volta o palhaço Trump e, aqui no Brasil, tirou do ostracismo um capitão ignorante e mal-intencionado.

O papel de Bolsonaro nesse conflito foi patético. Esteve com Putin, não se sabe pra quê, às vésperas da invasão. Ou melhor: pela presença do filho, chefe do gabinete do ódio, e de todos os ministros e comandantes militares na excursão, supõe-se que tenham tratado de assuntos cibernéticos, um ativo estratégico no mundo digital que os russos usam como ninguém; com essa arma, por exemplo, tentaram influenciar as eleições americanas e estão minando as defesas ucranianas.

Bolsonaro hipotecou solidariedade a Putin quando a guerra já se desenhava. Chegou a vender, através de seus fanáticos seguidores nas redes sociais, o papel de mensageiro da paz. E, quando os ataques começaram, manteve-se num silêncio envergonhado, apesar da gravata decorada por inúmeros fuzis que ostentava no Palácio do Planalto.

O mundo, preocupado, cobrava uma posição do governo brasileiro. Não era uma questão de neutralidade, justificava a Casa Civil, apenas de equilíbrio – um equilíbrio que deixava o Itamaraty numa saia justa: rompia o silêncio e tomava a atitude diplomática correta ou calava-se e atendia a vontade pessoal do presidente. Só no terceiro dia da guerra, o embaixador brasileiro manifestou, no Conselho de Segurança da ONU, a posição oficial contra a ocupação russa – atitude que até hoje Bolsonaro não assumiu, publicamente, com todas as letras. Pelo contrário. Continua defendendo uma neutralidade no conflito.

Essa guerra, como tantas outras, desperta uma estupidez contagiosa, que nos coloca numa posição privilegiada entre os animais irracionais. O que há de humano, entre nós?

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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