Um consenso amazônico

Numa semana em que esperava olhar um pouco para a frente, com Bolsonaro mais quieto, eis que ele contrai o novo coronavírus e retoma todo o seu discurso de negação e irresponsabilidade. Ele se contaminou na semana em que vetou a obrigatoriedade das máscaras em lojas, templos e presídios, contrariando a orientação científica internacional.

Fica difícil olhar para a frente com o caos criado no Ministério da Educação. Como retornar às aulas em escolas públicas sem um plano adequado? Algumas não têm sequer saneamento básico. E grande parte dos alunos não se pode integrar ao ensino a distância por falta de meios.

Mas o futuro, de certa maneira, pede passagem, na voz dos investidores internacionais e dos grande grupos econômicos do Brasil: eles não aceitam mais a política ambiental do governo para a Amazônia. Há quem ache estranha a procedência desse apelo pela floresta.

A ecologia, sobretudo nos Estados Unidos, sempre foi vista como uma dimensão da luta anticapitalista. Os próprios partidos verdes sempre se voltaram para a esquerda na suas alianças, muitos considerando o socialismo como o horizonte de suas aspirações.

Mas esse consenso de que ecologia e capitalismo não se encontram nunca vem sendo quebrado há muito por filósofos conservadores, como o inglês John Gray, por exemplo. O primeiro contato que tive com sua agenda verde para o conservadorismo foi em 1993, no livro Para Além da Nova Direita, uma crítica ao neoliberalismo. Gray formulava uma agenda para a Grã-Bretanha e partia do princípio de que havia muitas convergências entre o pensamento conservador e os teóricos verdes. Na verdade, ele acha que o berço de algumas ideias aceitas pelos ecologistas podem ser encontradas em pensadores como Edmund Burke.

Uma delas é de que o contrato social não envolve apenas anônimos e efêmeros indivíduos, mas gerações passadas, presentes e futuras. O diálogo da visão conservadora de Gray com a filosofia verde naturalmente passa por críticas ao anticapitalismo que despreza alguns benefícios das instituições do mercado e subestima os custos do planejamento central e seus efeitos catastróficos no meio ambiente, como, por exemplo, na antiga União Soviética. O livro de Gray é só uma das indicações de que conservadores buscam convergências com o movimento verde.

De modo geral, associa-se a visão conservadora ao neoliberalismo, abstraindo sua visão cética sobre o progresso, com suas ironias e ilusões. Aqui, no Brasil, assim como em muitos países do mundo, há a ideia de que o capitalismo, ciente da finitude dos recursos naturais, quer explorá-los o mais rápido possível, consumir tudo antes que a vida humana se torne impossível no planeta.

Essa visão, hoje, na Amazônia, é das forças bolsonaristas compostas por desmatadores, grileiros e garimpeiros, que têm pressa em retirar todos os frutos da floresta, destruindo-a e aos seus habitantes tradicionais. Infelizmente, uma concepção de defesa nacional, no meu entender anacrônica, fortalece esse caminho.

Fica evidente, pela posição dos fundos de pensão e dos grupos econômicos internos, que não é essa a alternativa que aprovam e, nessas circunstâncias, há uma convergência com as bandeiras verdes. Esses grupos financeiros e econômicos não tiraram suas ideias de um mundo abstrato, mas da observação das sociedades onde atuam e prosperam. Nesse sentido, estão em sintonia com instituições brasileiras como o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público, este pedindo abertamente a demissão do ministro do Meio Ambiente por sua política anti-histórica e destrutiva, que, afinal, é também a política de Bolsonaro.

Os grupos econômicos brasileiros decidiram enviar seu apelo ao vice-presidente Hamilton Mourão, que se tem mostrado em sintonia com a política de Bolsonaro na Amazônia. É uma política predatória, que acaba favorecendo os fora da lei que queimam, desmatam e invadem terras públicas e áreas demarcadas para as comunidades indígenas.

Uma consideração sobre o futuro tem de ser, certamente, muito mais ampla do que um simples exame da política amazônica. Há esperanças, no entanto, de uma composição com o enfoque conservador. A vulgaridade da visão de progresso das forças bolsonaristas não pode ser considerada como um produto único do capitalismo. Na verdade, ela é mais a expressão do banditismo e da rapina, de um capitalismo ultrapassado que o mundo contempla com horror, num momento de crise ambiental planetária.

Certamente o edifício reacionário é mais complexo e diverso do que sua expressão amazônica. Mas se ele pode ser rompido em algum ponto onde apodreceu, a ponto de reunir forcas heterogêneas numa frente pela vida, ele pode ser rompido por aqui.

Desse ponto se pode achar um atalho para uma frente pela vida na política contra a pandemia do coronavírus, um consenso sobre a ênfase na educação abandonada; enfim, uma ampla reforma nesse prédio corroído pelo cupim da ignorância e do despreparo. É uma agenda mínima para pensar no futuro para além das peripécias de um governo que não sabe para onde ir.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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