Um domingo em nossa vida

Domingo pode ser o fim da era Bolsonaro. Duas visões de Brasil muito diferentes se encontram. A possibilidade de mudança é alta. Bolsonaro já foi derrotado no primeiro turno. Derrota inédita para um presidente em exercício.

Os fatos neste final de campanha parecem confirmar a tendência de derrota. O primeiro deles foi a frase de Bolsonaro confessando uma atração sexual por uma refugiada venezuelana de 14 anos: “pintou um clima”. Para um líder político que se diz defensor da família, dos bons costumes e da religião, a frase de Bolsonaro é escandalosamente contraditória. Seria o mesmo que um líder na luta contra a corrupção aparecer com milhares de dólares na cueca.

Mesmo sem pressão da mídia e da campanha opositora, o fato ganhou as redes e, num primeiro momento, produziu 1,5 milhão de postagens. Bolsonaro afirmou que as meninas venezuelanas estavam se preparando para se prostituir. Falso. Isso também causou revolta.

No âmbito político, o caso Roberto Jefferson, do princípio ao fim, é negativo para a campanha de Bolsonaro. As três granadas que lançou contra os policiais acabaram explodindo também no colo de seu aliado.

No fim de semana, Jefferson, em nome da liberdade de expressão, lançou um ataque repugnante contra a ministra Cármen Lúcia. Ele estava proibido de usar a internet, de dar entrevistas e receber políticos, mas fazia tudo isso. O ataque em si, pelas características repulsivas, invalidava a chamada luta pela liberdade dos bolsonaristas, que, de fato, queriam como tática apenas esticar a corda contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), produzindo mentiras e atraindo a repressão.

Uma demonstração mais nítida dessa tática foi a de um pastor em Minas Gerais que falsamente se disse obrigado a desmentir uma notícia pelo TSE. Era uma forma sensacionalista de divulgar fake news.

A resistência armada de Jefferson ferindo dois policiais é uma demonstração extrema do absurdo da política bolsonarista. Ele atraiu a Polícia Federal, ao provocar a própria prisão, e a recebeu a tiros de fuzil e explosão de granadas.

A tática de provocar o TSE e, mais ainda, a superutilização de armas revelaram como o bolsonarismo é perigoso no descumprimento da lei e na resistência armada.

Muito possivelmente, Jefferson, um homem doente, queria provocar um confronto armado e aparecer como uma vítima da luta pela liberdade, tumultuando a última semana de campanha. Foi um gesto desesperado, felizmente neutralizado porque o agressor foi preso sem nenhum arranhão.

Dois policiais ficaram feridos, assim como um cinegrafista espancado por manifestantes da extrema direita.

Depois de anunciar que mandaria o ministro da Justiça negociar a prisão de seu aliado, Bolsonaro recuou no princípio da noite. Recuou mal. Tentou se desvincular de Jefferson afirmando que nem foto dos dois juntos existia. Elas apareceram em abundância muitos depois, revelando mais uma mentira presidencial.

No campo econômico, a notícia-bomba foi o plano de Paulo Guedes de desvincular o salário mínimo da inflação – desindexar, na linguagem técnica. Isso foi tentado, sem êxito, na ditadura miliar. Hoje, representaria uma perda de 10% no salário mínimo e prejudicaria também os aposentados. Pesquisas indicam que 80 milhões de pessoas podem ser afetadas.

Com um desempenho desses na reta final, é possível dizer que Bolsonaro não reuniu condições para virar o jogo.

No entanto, as mudanças que se aproximam não podem ser vistas como um amanhã luminoso. Há muitas dificuldades no horizonte. Em artigo anterior, mencionei a conjuntura internacional marcada pela guerra na Ucrânia e pela crise energética na Europa.

O País sairá dividido da eleição. A mesma artilharia eletrônica que produz fake news em massa na campanha pode ser orientada contra o novo governo.

Não caberia apenas ao novo presidente conduzir um processo de pacificação, mas é uma tarefa de todos os que respeitam o resultado das urnas e querem virar a página da intolerância que dominou o País.

Existe uma possibilidade de avançar cautelosamente e isolar a extrema direita. Separar conservadores de reacionários, religiosos bem intencionados de líderes espúrios do tipo Bolsonaro e Jefferson.

Da mesma forma que apenas um presidente não basta para o processo de pacificação, autoridades não bastam para conter o processo de fake news. É preciso um esforço social que passa também – como já ocorre em alguns países – por cursos ensinando as pessoas a se defenderem das fake news, produzindo seus próprios filtros. É preciso que elas tenham uma espécie de roteiro bem desenhado para encarar as notícias que chegam e aplicar a elas um método ao qual a maioria das fake news não resiste.

Embora boatos sempre existiram na política, a chamada realidade alternativa foi inventada pela extrema direita, da mesma forma a tática de mentir para bolhas sabendo que elas não entram em contato entre si. O método celebrizado no Brexit, a saída da Grã-Bretanha da Europa, ampliou-se e ficou mais sofisticado. Não bastará, portanto, isolar politicamente a extrema direita, mas encontrar antídotos sociais para o seu veneno.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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