Um mergulho na escrevivência de Conceição Evaristo

O que está no centro do debate é escrever o que se crê

Pensei muito se eu, uma mulher branca, deveria ousar escrever uma resenha sobre este livro primoroso da autora mineira Conceição Evaristo. A resposta veio quando, já ao final da obra, reli a dedicatória: “Este livro é oferecido a todas as pessoas que se enveredam pelos caminhos da paixão e que, mesmo se resfolegando em meio a muitas pedras, não se esquecem do gozo que as águas permitem”. Me senti autorizada.

Conceição criou o conceito Escrevivência para: “Agarrar a vida, a existência e escrevê-la em seu estado de acontecimentos”. Escrevivência que é também: “Vivência e criação, vivência e escrita”. Escrevivência que possibilita que “um corpo quase desfalecido de dor se recupere na contação da vida”. Me identifiquei tremendamente. Além de autoficcionista, faço parte de um grupo de autoras que afirmam ter mais clareza de suas extensões no mundo a partir do que narram sobre si mesmas.

Me lembrei ainda do que disse Grada Kilomba sobre o seu livro magistral “Memórias da Plantação“: “Escrever foi, de fato, uma forma de transformar, pois aqui eu não sou A OUTRA, mas sim eu própria. Não sou o objeto, mas o sujeito. Eu sou quem descreve minha própria história, e não quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como um ato político. Um ato de tornar-se”.

Pensando em objeto e sujeito, acho interessante que o protagonista deste “Canção para Ninar Menino Grande” não seja de fato um protagonista. Fio Jasmin, homem preto, belíssimo, de moleira aberta (portanto, sem juízo) e dilacerador de corações, só existe porque pôde ser contado, sonhado, desenhado e maldito a partir de vozes, gritos, soluços e canções de mulheres pretas que puderam tocá-lo até que sua carne, tal qual sua identidade, desaparecesse.

E é a história delas, como habitavam este planeta antes, durante e depois da chegada do maquinista disposto sempre “a encontrar algum corpo de mulher para experimentar o sabor da cidade”, o verdadeiro material que nos importa do livro, o conteúdo que nos conecta (e a todas elas também, entre si) e o que nos conduz, ao final, à alguma elucidação (que nos entorpece de uma compaixão possível) sobre o comportamento de um homem que não sabia e não podia amar.

O verdadeiro “fio” é o que interliga a esposa de Jasmim à moça dos pezinhos de Cinderela à senhorita que esperava ansiosamente pela chegada de um noivo à beldade liberta que insistia em nadar pelada em um rio à virgem viciada em carícias e à lésbica que pode ceder um outro aconchego ao desbravador de delícias e dores. E assim, sucessivamente, foram elas que contaram suas solidões até que uma mulher pudesse contar todas a Conceição Evaristo.

Então sabemos o motivo que levou um homem preto a desguarnecer de afeto tantas moças românticas, apaixonadas e ardentes. Se elas se sentiam, logo depois de se deitar com Jasmim, tremendamente injustiçadas, enganadas e sem esperança, era porque ele próprio carregava dentro de si um imenso vazio. Era ele o buraco castrado, a ferida aparente. Era ele próprio, que impossibilitado de ser o príncipe no teatrinho da escola primária, teria feito um acordo ambivalente com seu ego: seria ele o rei intocável branco de todas elas, seria ele o corpo preto vassalo de todas elas. Ele, despedaçado, rejeitado, à procura do que é ser um homem. Ele feito objeto, acreditando que o seu corpo era para servir, para usar, fosse para orgasmos, fosse para fazer filhos. E assim, sem saber como poderia ser pouco ou demais, acabou dando a algumas delas (e isso renderia outro livro maravilhoso da autora) somente o que já queriam sem poder enunciar: uma vida livre.

Só pensamos o corpo jovem, atrevido, invejado por outros homens e desnudado de Fio Jasmim a partir do prazer, da dor, da solidão e até da finitude da vida de tantas mulheres que puderam amá-lo e esperá-lo.

Neste livro poético, forte, trágico, erótico, com duas narradoras que são tantas e um protagonista que teme justamente jamais sê-lo, o que está no centro do debate é escrever o que se crê: “Vem daí a minha invenção, pois a canção é minha também”.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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