Um país partido

Por que casos como esses estão se tornando cada vez mais comuns? Há o racismo impregnado na vida nacional. Há também impunidade. E há o discurso de ódio encorajado pelo Planalto, que prega a violência, libera a venda de armas e acoberta ações criminosas das milícias tão elogiadas pelo presidente e seus filhos

Os últimos dias desmascararam de vez o país em que vivemos. Afogado em problemas e vergonhas, o Brasil é um país partido. E polarizado em todos os sentidos. Como partido – e polarizado – está em relação a seu futuro. Em 1994, o jornalista Zuenir Ventura escreveu um livro intitulado Cidade partida, um mergulho nas entranhas do Rio de Janeiro para traçar o retrato fiel de uma guerra contra a violência, uma guerra persistente que não se resolve à bala; só vai acabar quando incorporar à sociedade a enorme e crescente legião de excluídos. O Brasil se acostumou ao horror do enorme fosso que separa ricos e pobres.

E banalizou a violência. Não precisamos mergulhar nas entranhas deste país para conhecer suas discrepâncias. Elas estão à mostra, agressivas, e são tão gritantes quanto a desigualdade social que marginaliza milhões de brasileiros, lançando-os, violentamente à falta de teto, de comida, de emprego, de esperança, de vida. Metade de toda a riqueza nacional está na mão do 1% mais rico da população – e esse 1% desconhece a solidariedade.

O que aconteceu na última semana delimitou outras fronteiras desse apartheid. De um lado do Brasil partido, a solidariedade irrestrita e comovente de brasileiros que não cruzam os braços – como fazem muitas das chamadas autoridades – diante de uma tragédia. De outro, o ódio, principalmente contra negros e pobres, disseminado por Brasília e estimulado por uma política armamentista.

O lado bom deste Brasil partido mostra que nem tudo está perdido. Ainda há esperança. Foram inúmeros os exemplos de pessoas que se dedicaram a ajudar as vítimas dos temporais que assolaram o Sul de Minas e cidades do interior de São Paulo. Como Ricardo Manuel Teixeira, um ajudante de obra de seus 30 anos. Ele passou vários dias debaixo de chuva ajudando no resgaste de pessoas que foram soterradas pelo desabamento de parte do morro do Parque Paulista, em Franco da Rocha. Ricardo deu uma resposta emocionada ao repórter que perguntou o que ele fazia ali. “Mesmo se arriscando, sabendo que eu tenho três filhos em casa, sabendo que isso pode desabar tudo, não dá, né? Não dá, amigo, querendo ou não, dói no coração…você está em casa, tomando café…, não fazer nada e saber que tem muita gente precisando aí, né? Mesmo que não esteja com vida, mas pelo menos para ter um enterro digno.”

Do helicóptero, o presidente assistia lá do alto à romaria de pessoas enlameadas, com baldes na mão, cavando a terra em busca de vítimas, como Ricardo, num cortejo de solidariedade. Assistia, mas nada via porque solidariedade é um sentimento que ele não conhece. Se descesse, pegasse um balde e botasse o pé na lama, teria feito melhor que comer galinha com as mãos espalhando farofa pela roupa e pelo chão só para vender a imagem de que é uma pessoa do povo. Não é. Uma pessoa do povo não come como um porco. E vai lá socorrer o próximo.

Se de um lado existe esse alento do Brasil solidário, de outro a violência explode em ódio principalmente contra pretos e pobres. E esse lado ruim do Brasil partido mostrou a cara em dois momentos. No primeiro deles, três homens se sentiram à vontade para espancar até a morte um jovem negro de 24 anos que deixou o Congo com a família para tentar a sorte no Brasil. Encontrou a morte, de maneira cruel e covarde. No outro, um sargento branco da Marinha deu três tiros e matou um trabalhador negro de 38 anos, repositor em supermercado, só porque achou que ele era um assaltante.

Por que casos como esses estão se tornando cada vez mais comuns? Há o racismo impregnado na vida nacional. Há também impunidade. E há o discurso de ódio encorajado pelo Planalto, que prega a violência, libera a venda de armas e acoberta ações criminosas das milícias tão elogiadas pelo presidente e seus filhos.

A praia da Barra, onde o congolês foi morto, já registrara outras duas mortes por agressão física em janeiro, e os quiosques da orla são dominados pela milícia. Ao publicar longa reportagem sobre o brutal assassinato de Moïse Kabagambe, o jornal inglês The Guardian fez as contas e chegou a uma conclusão triste, de tão surpreendente: a cada 23 minutos morre um George Floyd no Brasil – referência ao norte-americano negro sufocado até a morte por um policial branco, assassinato que gerou uma onda enorme de protestos por todo o país.

Por aqui, as manifestações por justiça no caso do jovem congolês levaram pessoas às ruas na maioria das capitais brasileiras, num movimento que pode ser resumido em uma única palavra: “BASTA!” Do governo, veio, como sempre nesses casos, um silêncio ensurdecedor e conivente. Em suma, a semana escancarou esse confronto entre o Brasil da solidariedade, da compaixão, da humanidade e o Brasil do ódio, da violência, da intransigência. Um confronto que vai durar pelo menos até outubro, quando escolheremos entre um lado e outro. O Brasil da democracia ou o Brasil do autoritarismo.

Fim de papo

# Com um apelo aos médicos do Planalto: por favor, internem a Damares, é uma questão humanitária; # E um infame comentário do 03: “Se o feminismo cresce, é por causa de homem frouxo”. Donde se conclui que ele, se não é frouxo, é um canalha.

 

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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