Um presidente pequeno

As declarações de Luiz Inácio Lula da Silva neste domingo, em Adis Abeba, na Etiópia, expuseram, mais uma vez, um presidente aprisionado numa visão de mundo simplista e sectária – um presidente ideologicamente seletivo tanto em sua solidariedade quanto em sua indignação. Quanto mais fala, mais o líder que se pretende um estadista do século XXI revela-se um caudilho do século XX. Apresenta-se como um presidente, antes de tudo, pequeno.

Como se pode assistir abaixo (na íntegra e sem cortes), Lula ainda divide o mundo entre ricos e pobres. Os ricos são maus e colonizadores. Os pobres são bons e explorados – são, em resumo, “as soluções”, como ele diz, para os problemas do planeta. Parece um discurso extraído de uma reunião esfumaçada de calouros de um centro estudantil da década de 1970. Lula se propõe a liderar os pobres do “Sul Global” num movimento rumo à prosperidade. As boas intenções não escondem a pobreza intelectual e a ingenuidade política.

A raiz das ideias (mal) articuladas por Lula está num bolo ideológico pseudomarxista que já era bolorento na década de 1980, embora ainda seja consumido sem moderação em algumas universidades brasileiras. Entre os ingredientes, estão uma hostilidade atávica e paranoica aos Estados Unidos e à Europa, reduzidos, nas versões mais generosas, a colonizadores ricos. Por contraponto ao capitalismo, e por incapacidade de manter pensamentos contraditórios na cabeça, a então União Soviética era fonte de inspiração e de respeito. Como a Rússia totalitária e assassina de Vladimir Putin o é hoje, embora de maneira um tanto envergonhada.

Essa prisão ideológica, na qual Lula se sente confortável para porfiar estultices, permite o silêncio sobre os abusos de poder e as violações sistemáticas de Direitos Humanos na Venezuela, incluindo as mais recentes, sobre os quais o presidente brasileiro disse ainda “não ter as informações”.

O petista também pediu cautela quanto à morte na prisão de Alexey Navalny, principal opositor do regime de Putin, ao ser perguntado sobre o assunto. “É preciso ter bom senso”, disse. “É preciso ter uma investigação para saber do que o sujeito morreu. (…) Para que essa pressa?”

Parece inacreditável que Lula acredite ser possível esperar alguma investigação séria da Rússia sobre a morte de Navalny. Afinal, somente alguém ignorante quanto à natureza do regime de Putin poderia afirmar algo tão desprovido de sentido. Basta, porém, acompanhar a rede de blogs e sites de quem se diz da esquerda brasileira para entender por que Lula fala tanta bobagem. Nesse rincão, prevalecem, com status de informação factual, as peças de propaganda disseminadas pelo Kremlin – agitprop de péssimo nível, diluída em erros grosseiros, mas, ainda assim, agitprop suficiente para quem precisa de sua dose cotidiana de ficção ideológica. É simples produzir esse novichok informacional. Misture três substâncias: “CIA”, “mídia ocidental” e “nazistas”. A paralisia cerebral do alvo é garantida; os retuítes, também.

O silêncio de Lula sobre as atrocidades de Putin, e os riscos existenciais que elas representam à civilização ocidental, espelha o silêncio de Donald Trump. Para o gângster russo, tanto Trump quanto Lula são peças úteis, e idiotas úteis, na mais benigna da hipóteses, em sua campanha expansionista e belicosa contra o Ocidente. As propagandas do Kremlin fazem sucesso entre a direita americana e a esquerda brasileira porque ambas estão unidas pela desconfiança e, não raro, pelo desprezo às instituições que compõem as democracias liberais. É o alicerce daquilo que chamamos de Estado Democrático de Direito – esse edifício que, dizem alguns, Lula foi eleito para proteger.

Lula pode falar asneiras antidemocráticas e iliberais impunemente porque o país que ele preside pouco se importa com essas vulgaridades burguesas – coisa da Direita, afirmam os bonequinhos brasileiros abastecidos pelo Kremlin. É essa ordem ocidental, imperfeita como é e que, se seguir existindo, sempre será, que permite o avanço da defesa de Direitos Humanos e a proteção de minorias, como mulheres, negros, indígenas e a comunidade LGBTQIA+, entre tantas outras. Como, por exemplo, uma minoria pouco citada: os judeus, que são alvos constantes de críticas e ataques – mas nunca, jamais, veja bem, de antissemitismo. Imaginem que absurdo.

É por beber dessa ideologia venenosa e, também, por sua predileção por enxergar o mundo entre opressores e oprimidos que Lula expõe sua incoerência e sua seletividade, para não falar de sua ignorância ultrajante, ao mencionar a guerra em Gaza. O presidente poderia insistir em sua preocupação, compartilhada por muitos, sobre as vítimas civis da campanha israelense no território palestino.

É perfeitamente possível apontar a falta de proporcionalidade nos ataques militares em Gaza, condenar o governo autoritário de Benjamin Netanyahu e, ao mesmo tempo, reconhecer que:

1. O Hamas é uma organização terrorista, cuja formação visa ao extermínio de judeus e à eliminação de Israel;

2. A incursão do Hamas em Israel foi um ato terrorista – o pior desde o Holocausto; e

3. Israel tem direito de se defender e enfrenta um inimigo num conflito assimétrico e de combate difícil.

Se, desde o ataque do Hamas em outubro, que precipitou a guerra, Lula tivesse condenado de modo inequívoco o ato terrorista e prestado verdadeira solidariedade a Israel e ao povo judaico, sua indignação pelas vítimas palestinas, entre elas milhares de crianças, não seria percebida como incoerente e seletiva. É assim percebida por ser, de fato, incoerente e seletiva.

É por isso que não há surpresa quando Lula recorre a um ardil retórico retirado das peças de propaganda antissemita para atacar Israel. Ao comparar as ações de Netanyahu em Gaza ao que Hitler fez no Holocausto, o presidente brasileiro não revela somente sua ignorância histórica e sua seletividade moral. Demonstra estar com o discurso alinhado com os terroristas do Hamas. Tanto que a organização não tardou a agradecê-lo. Para o Hamas, Lula é grande.

Para alguns brasileiros, sobretudo em Brasília e na opinião pública, Lula pode não ser grande, mas era a melhor opção disponível para impedir um segundo mandato de Jair Bolsonaro, um ex-capitão do Exército que se notabilizou por defender a barbárie da ditadura militar, incluindo torturas e prisões políticas. Eleito, mobilizou o medo de um comunismo inexistente, promoveu o negacionismo sanitário em meio a uma pandemia global, elevou malucos da extrema direita ao poder, instrumentalizou a liberdade de expressão para atacar seus inimigos no Judiciário e, fosse isso pouco, planejou um golpe militar para se manter no poder.

Não é preciso meter-se em exercícios inúteis de comparação entre Lula e Bolsonaro, os dois principais líderes políticos do país, para saber que o Brasil está mal de democratas.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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