Uma imagem adequada para o Rio

A trágica ironia (se é que se pode acrescentar aqui mais uma tragédia ao acontecido) é Tropicália ser o nome do quiosque que serviu de palco para a barbárie. Tristes trópicos. Triste Tropicália. Triste carga simbólica

Não sei você, mas eu fiquei impressionada com a foto que mostra o Rio amanhecendo vermelho no sábado passado (alguns dizem rosa). Inacreditável! Efeito da erupção do vulcão Tonga, cujas partículas viajaram incríveis 13 mil quilômetros para tingir os céus da alvorada carioca.

O fenômeno atmosférico em si é espantoso (e a foto é bela, não se pode negar). Mas mais assombroso ainda foi o fato ter acontecido justo naquele sábado, quando fomos surpreendidas com a brutal notícia de que o jovem congolês Moïse Kabamgabe, de 24 anos, havia sido barbaramente assassinado a pauladas num quiosque na Barra da Tijuca, na segunda-feira anterior, dia 24.

A imagem do cartão postal carioca naturalmente pintado de vermelho assumiu para mim a representação de uma cidade afeita a chacinas e outros banhos de sangue que, de tão constantes, passaram a anestesiar corações e mentes. Quer melhor simbologia de que a explosão de um vulcão pintar de vermelho – a cor do sangue – a cidade dita maravilhosa num dia de vergonhoso luto coletivo por mais um crime abominável?

A trágica ironia (se é que se pode acrescentar aqui mais uma tragédia ao acontecido) é Tropicália ser o nome do quiosque que serviu de palco para a barbárie. Tristes trópicos. Triste Tropicália. Triste carga simbólica.

Algumas circunstâncias chamam a atenção nesse caso de escabrosa selvageria. A saber:

– Pelo menos quatro pessoas participaram do massacre (QUATRO!);

– Moïse foi morto a pauladas;

– Mesmo depois de morto, continuou a ser agredido (torturado);

– O crime levou cinco dias (CINCO) para ser noticiado pela imprensa;

– Moïse foi a terceira pessoa morta por espancamento na Barra da Tijuca em menos de um mês.

No quesito violência, ainda no mesmo sábado, era possível ler na capa de O Globo a seguinte chamada: “Polícia do Rio testa spray antiarrastão”. O texto explicava que “o secretário da PM do estado, coronel Luiz Henrique Pires, afirmou que é feita ‘quase uma operação de guerra’ para que os banhistas possam ir à praia com segurança”.

Alôôô! Leram – lemos – bem? Operação de guerra para assegurar a ida à praia?!! Alguma coisa está muito errada na cidade maravilhosa, e não são os efeitos do vulcão Tonga.

A reportagem na parte interna do jornal acrescenta que a PM do Rio “tem empregado na segurança das praias quase 800 homens por dia nos fins de semana, além de tropas especiais com cães, cavalos e aeronaves”. Isso não é “quase uma operação de guerra”. É uma guerra propriamente dita. Só não vê quem não quer.

Ou melhor: “Você olha e não vê”, como diz a letra de A Tonga da Mironga do Kabuletê, de Vinicius de Moraes e Toquinho, que fez muito sucesso nos anos 1970 e é lembrada aqui não só por conter o mesmo nome do vulcão, mas pelo verso citado que faz todo sentido no momento.

A música, composta em plena ditadura, não tem nada a ver com o vulcão Tonga, e reza a lenda que o trecho “eu vou é mandar você pra tonga da mironga do cabuletê” é um xingamento em nagô que quer dizer… bem, você sabe o quê.

Foi uma estranha coincidência. Mas o Rio tinha mesmo razão de amanhecer vermelho depois de tamanha barbárie que revoltou a todos. É triste, escandaloso, inacreditável e inaceitável o que aconteceu.

A foto que era para ser o simples registro de um fenômeno atmosférico pode ter virado um dos símbolos de uma cidade violenta. A natureza soube se manifestar com grande magnitude. Fez sua parte. Esperemos que os humanos também o façam.

Coronadica

Programão: começa no próximo domingo, 6, às 21h30, a série Bossa Nova, de 12 episódios de 30 minutos cada, sobre esse gênero musical. Haverá muita música, imagens de arquivo e entrevistas. Os episódios serão reprisados às terças-feiras, às 20h30. No Films&Arts (148 ou 648 na Net). No total, seis horas de Bossa Nova. Promete.

Saudações! E até a próxima.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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