Uma novela só com vilões

Ela sonhava com um país mais justo para os menos favorecidos

Conheço muita gente, sobretudo no meio cultural, que tem preconceito com novelas. Criticam as tramas bobas e fáceis, recheadas de personagens repetidos, maniqueístas e simplórios.

Confesso que, hoje em dia, não sou consumidora delas (portanto, não opino), mas é inegável o que muitos personagens já fizeram por nós.

Comecemos por Malu, papel de Regina Duarte no seriado “Malu Mulher”. Era o começo dos anos 80 e minha mãe vivia um casamento tóxico, limitante e infeliz. Foi quando encontrou forças naqueles diálogos, na energia daquela protagonista inesquecível, para se separar do meu pai.

Voltou a trabalhar, a estudar inglês e em pouco tempo seu salário já tinha ultrapassado o de muitos homens machistas da família.

Fez ginástica, pode finalmente usar minissaias sem aturar ninguém lhe perturbando, retomou o apreço por si mesma, teve alguns namorados e, graças a ter se tornado uma mulher mais realizada, pode também ser uma mãe melhor.

Anos depois, durante a minha pré-adolescência, lembro da obsessão por “Vale Tudo”. Novela em que Regina Duarte fez a pobre, honrada e batalhadora Raquel Accioli.

Quem não se recorda dela sonhando com um país mais justo pra todos, sobretudo para os menos favorecidos? Já sua filha, a ambiciosa e preconceituosa Maria de Fátima, odiava “aquela gente” e faria de tudo para ter dinheiro e poder.

Se a novela fosse adaptada para hoje, Odete Roitman, outra personagem memorável no quesito “odiar pobres”, certamente estaria aplaudindo as falas do superministro Paulo Guedes.

No último episódio, o poderoso milionário (e bandido) Marco Aurélio, interpretado por Reginaldo Faria, mandava uma banana para o Brasil ao fugir do país impunemente.

Isso ia contra todos os princípios da personagem de Regina Duarte em “Vale Tudo”; no entanto, ao pensarmos na Regina real de 2020, perigava ela pedir pra fazer uma selfie.

Passei boa parte dos anos 90 me vestindo de Porcina (nem que fosse para ir do quarto para a cozinha), personagem de Regina na novela “Roque Santeiro”. Eu tinha, na versão para crianças, suas “tiaras turbantes” e roupas exageradas.

A viúva fogosa fazia político de capacho, era a “dona”, e estendia a mão para que a beijassem. Que saudade de ver Regina fazendo um Sinhozinho divertido se ajoelhar e não servindo a um Sinhozinho que é a maior vergonha e depressão de uma nação. Ou, melhor dizendo, que saudade do seu “noivo” ser um Sinhozinho de mentira.

Mas a minha personagem preferida apareceu no período da adolescência: a espetacular Maria do Carmo. Eu estudava em uma escola de riquinhos e eles viviam me esnobando como se eu fosse lixo. Um dia, eu planejava: “esses desgraçados ainda vão me pedir ajuda, emprego (e amizade no Facebook)”!

Obrigada, Regina Duarte, porque já recebi muitos currículos de conhecidos daquela época. “Rainha da Sucata”, na minha modesta opinião, exibiu a protagonista mais bem escrita de toda a história da Rede Globo.

Mas a nossa futura secretária da Cultura, que deve assumir o cargo no próximo dia 4 de março, infelizmente não é mais uma Helena que faz tudo por amor.

E eu, tão apegada às histórias bem construídas e contadas, sofro em ver o rosto de tantas heroínas apoiando um presidente fascista, ignorante, amigo de miliciano e misógino (isso pra encurtar a conversa).

Um homem que se refere de forma grotesca e criminosa ao falar de uma das mais sérias e respeitadas jornalistas do Brasil. Um dos piores capítulos de todos os tempos tem se provado ser a nossa realidade, uma novela só com vilões.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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