Veja-se!

Ajuste de contas. Liv Ullmann dirige roteiro de Ingmar Bergman e traz velhos fantasmas de volta em Infiel. O cineasta Ingmar Bergman estava com 82 anos e passava a maior parte do tempo isolado em sua casa na ilha de Faro, na Suécia, seu país natal. Dizia ter pensamentos suicidas e desde 1982, quando fez o maravilhoso Fanny e Alexander, não lançava um filme. “Larguei o ramo da carnificina e da prostituição”, foi como se referiu ao cinema numa de suas raras entrevistas. Dadas essas circunstâncias, o mais próximo que se pode ter de um novo filme de Bergman é Infiel (Trolösa, Suécia/Itália/Alemanha, 2000), desde sexta-feira em cartaz em São Paulo. Infiel parte de um roteiro que o diretor confiou à direção de sua ex-amante e ex-musa, a atriz norueguesa Liv Ullmann. É um torturante ajuste de contas com o passado. No filme, um velho diretor evoca o fantasma de uma atriz, Marianne (a sueca Lena Endre), para que ela rememore um trágico episódio de adultério. Marianne tem seus 40 anos e um casamento afetuoso e sensual com o maestro Markus, pai de sua filhinha Isabelle. Certo dia, ela olha nos olhos do diretor de teatro David, melhor amigo do marido, sente uma turbulência emocional e decide que precisa ter um caso com ele. O romance é agendado – isso mesmo – para a ocasião de uma viagem a Paris. Mas a sensação de controle é só aparente. Logo os amantes estarão presos numa rede de obsessão e desintegração.

É difícil não se perguntar por que Marianne troca um casamento feliz por uma aventura com um sujeito neurótico, egoísta e autodestrutivo como David. A resposta, já explorada por Bergman em alguns de seus dramas mais duros, é que parte da intimidade conjugal se constrói sobre a possibilidade – ou até a necessidade – de ferir o parceiro onde a dor será maior. Ruptura e divórcio seriam, assim, uma extensão desse processo. Para realmente entender Infiel, contudo, é preciso conhecer os seus bastidores. Não é coincidência que o velho diretor que conjura Marianne se chame Bergman e seja interpretado por Erland Josephson, que foi o alter ego do cineasta em vários de seus filmes – como em Cenas de um Casamento, de 1973, do qual Infiel é um parente próximo. As duas fitas têm por trás delas um episódio real: um romance que Bergman teve com uma mulher casada, que culminou numa gravidez inesperada e numa batalha cruel entre ela e o marido traído pela guarda dos filhos. Para deixá-la em paz, o sujeito sugeriu que dormissem juntos uma última vez. Ela cedeu e Bergman, enraivecido, deixou-a à própria sorte. Liv Ullmann diz que o diretor nunca se perdoou por tal atitude e “deu” Infiel a ela para ser confrontado por um ponto de vista feminino. Não custa lembrar que Liv, de 61 anos, não é uma observadora qualquer nessa história. Também ela deixou o marido para viver com Bergman e teve uma filha com ele, Linn, que depois criaria sozinha.

Como diretora, Liv é uma discípula à altura de Bergman (a quem costuma chamar de “gênio”, em tom ora reverente, ora jocoso). Demonstra o mesmo rigor formal e pulso forte que fizeram dele um dos únicos cineastas capazes de filmar paisagens emocionais, por assim dizer, sem atenuar nada da desolação que enxerga nelas. Infiel é tão devastador quanto suas maiores obras, mas tem um toque que faltaria ao cineasta. Bergman nunca foi de dar muita bola a seus oito filhos. Dizia não saber sequer que idade tinham. Em Infiel, se existe uma verdadeira vítima, é a pequena Isabelle, a única inocente da trama. Trata-se de uma contribuição explícita de Liv. De resto, o filme é puro Bergman. “Acho que ele precisava de alguém que, no fim das contas, lhe permanecesse fiel”, brinca a amiga e diretora.

Isabela Boscov

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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