Vendo a série ‘Succession’ relembro um pouco como eram as Redações

Ambição, coisa maravilhosa que acorda e dorme comigo desde os meus sete anos

Fui forjada no finzinho da publicidade da década de 90 e no começo do jornalismo dos anos 2000. A gente trabalhava até muito tarde e, quando ouvia que um texto estava uma merda retumbante, voltava para a mesa e criava mais duzentas opções. E, caso levássemos tudo como ofensa pessoal (e fôssemos chorar no banheiro), outra pessoa faria antes –e melhor– de nós e perderíamos o emprego.

Eu me acostumei com um ambiente de piadas sem fim e ironia afiadíssima. Assistindo à série “Succession“, em que os irmãos o tempo todo cospem bullyings e comentários ácidos uns nos outros, relembro um pouco como eram as Redações. Por esse motivo, acompanhar os episódios me faz sentir uma espécie de “unheimlich” –termo freudiano para descrever o “estranho familiar”, algo que já conhecemos e, por isso mesmo, soa tão inquietante.

Já entendi que a geração que veio depois de mim (e, convenhamos, deu tempo de virem várias) é totalmente diferente. Já aceitei que eles estão certos e eu errada. E já admiti que teria sido melhor para a minha saúde mental se àquela época já existisse o tal compliance nas empresas e que metade da minha vida profissional –que horror!– foi corroborar com assédios morais e sexuais.

Dito isso tudo, fico sempre maravilhada com o que nós, pais e mães obcecados por apartamentos próprios, carros espaçosos e planos de saúde com Fleury para toda a família, criamos: filhos que cagam baldes para nossos brinquedinhos conquistados com doenças autoimunes. E filhos que não aguentam 10% das críticas que, tirando as perversas e escrotas, nos fizeram crescer.

Um tempo atrás, contratei um assistente de roteiro para me ajudar com um projeto. Comecei a segui-lo nas redes sociais e, em meio a uma dezena de vídeos sobre a importância do comunismo para o Brasil, vi que ele também estava tentando mobiliar todo o apartamento fazendo publi para eletrodomésticos. Dei um toque: “Amigo, ou você é comunista ou garoto propaganda da Brastemp”. Era para a gente ter rido. Ele me zoaria de volta. Brindaríamos com kombucha. Mas não. O rapaz pediu demissão. Aumentou a análise. Passou a me odiar. Deve espalhar por aí que sou tóxica, assediadora moral. Não sei mais lidar com as pessoas.

Os filhos privilegiados de alguns dos meus amigos são os que parecem mais felizes em dividir, com cinco ou mais amigos que eles nem conhecem direito, banheirinhos minúsculos com chuveiro elétrico capenga. E, pelo que entendi, essa parece ser uma meta de vida (para todo o sempre!).

Outro dia ouvi de uma mulher de 30 anos que ela não paga convênio médico para os pais idosos porque prolongar a vida de velhos, como fazem os bons hospitais, é uma coisa muito neoliberal e eles têm o direito de morrer. Essa geração acha que o carro é uma coisa absolutamente do mal (mas vejo pouca crítica à uberização de trabalhadores) e que, se der para viajar para algum lugar com bastante falta de conforto, toda a humildade vivida ali só ajuda a meditar.

Graças a Deus fui mãe velha. Rita ainda é praticamente um bebê. Talvez ela faça parte de uma geração “meio do caminho”: que saiba não ser explorada e não levar desaforo para casa, mas ao mesmo tempo tenha alguma ambição. Ambição, essa coisa maravilhosa que acorda e dorme comigo desde os meus sete anos de idade. Que me faz acreditar que às cinco da tarde ainda dá tempo de emplacar mais umas ideias em vez de largar a caneta para saudar o pôr do sol.

Não tem nada a ver com só pensar em dinheiro, mas tem muito a ver com não torrar tudo o que a geração anterior ganhou e ainda vir com o papinho de que não pensa em dinheiro.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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