Virei uma tiazola reaça que sofre com as novas profissões

Passei a vida tentando explicar meu trabalho para pessoas bem mais velhas do que eu. Fui adolescente em uma época cheia de tios Armandos e tias Carminhas que só consideravam dignos os cursos de medicina, direito e engenharia. Letras ou arquitetura, por exemplo, já eram opções transgressoras de drogados ou comunistas.

No meu caso, quando enfim entenderam o que era ser redatora, eu já havia me tornado roteirista (e hoje me pego explicando o que é ser videocaster).

Mas eis que me percebo, agora, uma tiazola reaça sofrendo com as novas “profissões” do mercado. Nem todas se encontram relacionadas para inscrições no vestibular (é questão de dias), porém são vistas pelas redes sociais como escolhas incrivelmente rentáveis.

O primeiro que notei, um tanto perdida, é o “profissional pequena mazela pessoal”. É a pessoinha que pega um infortúnio desinteressante qualquer e vai se promovendo, de estagiária a CEO, conforme o agravamento da moléstia. Uma jovem que sofre com uma mancha marrom entre a boca e o nariz, por exemplo, um dia percebe que aquela alma de dono de padaria não se instalou em seu rosto apenas para acabar com seus dias. Tudo tem um sentido, nada é por acaso, que venha a evolução.

Ela precisava abraçar a mancha, aceitar a mancha, ser a mancha para deixar de ser a mancha. Ela precisava escrever sobre a sua dor. Conectar-se com quem sofre como ela. Engajar-se em todo um universo de bigodeiras cibernéticas. Cria então o perfil “Meu buço, minhas regras”. Ou o “Me ama, melasma”. Trabalha incansavelmente destruindo toda sorte de rapazes que a chamaram de Joaquim nos últimos anos. Chora em lives, enquanto tira a maquiagem. Recebe o like de uma ex-BBB que conta, em um impulso de humanidade: “Tenho melasma no ânus”.

No quinto dia de fama, quando três dermatologistas e cinco marcas de skincare já patrocinam seu canal, ela descobre que poucas sessões de laser poderiam resolver seu problema. Mas o que as suas seguidoras, as “bucers”, as “melasmers”, as “manchers” ou “bigoders” farão da vida sem essa rainha da sinceridade? Sem essa grande representante da “mulher real”? E o que ela faria sem o seu ganha-pão existencial?

É nesse dia que nossa influencer batalhadora mete suco de limão no rosto inteiro e vai torrar no sol do meio-dia. Ela precisa cagar o rosto todo para continuar tendo o que um dia sua avó materna feminista chamou de “a liberdade de ser uma mulher que não depende de ninguém”.

A segunda profissão mais assustadora das redes é o “bonzinho true crime”. É o ser que passa o dia tentando te convencer de que, só porque você achou que tinha cartilagem de joelho de elefante no rosto da Madonna, você é uma pessoa medonha. Você nem disse isso, apenas guardou para si. Mas o “bonzinho true crime” vai pescar esse androcentrismo escondido nos porões do seu cerebelo. Tudo é misoginia, falta de sororidade, idadismo, ginecofobia, antifeminismo.

Se você comer grão-de-bico com repolho e água com gás no restaurante, o “bonzinho true crime” vai sentir seu pum antes mesmo de você soltá-lo e vai dizer que foi uma tentativa velada de destruir toda a história de senhoras desconhecidas que estavam no mesmo elevador. Se você espirrar sem dar tempo de enfiar a cara dentro da camisa, será filmado e exposto como um ser tóxico que claramente estava tentando derrubar a imunidade de colegas mulheres.

À noite, o “bonzinho true crime” se refestela em imagens de damas sendo esquartejadas, seus pedaços dados a animais. A cada paulada na cabeça, um gozinho. Com uma coleção de moças sem vida, nosso tuiteiro ou tuiteira militante pelos direitos das mulheres já pode dormir em paz.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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