Você já traiu seu analista?

Humberto quer saber se meu inconsciente já pulou a cerca

Humberto quer saber se eu já tive dois analistas ao mesmo tempo, “sem que um soubesse do outro”. A pergunta seria estranhíssima, não fosse ainda mais grotesca a minha resposta: eu já tive três analistas concomitantemente.

Faz uns seis anos, eu frequentei uma terapeuta de casal winnicottiana (que escolheu o outro lado da história para dar holding), um analista lacaniano (que me honrava com os mais brilhantes cortes secos, até que eu fiquei grávida, cheia de manias e passei a ter uma aflição mortal da sua toalha de rosto esquecida em cima da escrivaninha) e uma terapeuta e escritora judia com quem fiz transferências maternas importantíssimas e que me deram um suporte psíquico fundamental em meio a hormônios amalucados.

A terapeuta de casal não fazia parte da minha traição, ela era a analista exclusiva de um monstrinho formado pela amálgama de dois sujeitos lutando para que seu egoísmo soasse menos grotesco quando em confrontação. Mas o lacaniano e a freudiana se pensavam únicos e eu jamais tive coragem de lhes contar que meu inconsciente estava pulando a cerca (e as minhas reservas financeiras estavam colapsando antes de mim).

Diz-se de alguns traidores, tanto faz o gênero ou o não-gênero, que eles são seres cindidos, incapazes de amar verdadeiramente os parceiros com quem transam gostosinho, ou de se lambuzar satisfatoriamente com quem respeitam a ponto de constituírem família. Por isso, para viverem uma relação que os completem, necessitam sempre de dois ou mais parceiros. Hoje concluo que, naquele tempo, levei essa máxima para a minha vida de analisanda.

A mulher era minha sopa quentinha, meu útero, meu acalanto esquizoide (a gravidez pode ser bastante paranoica) e ainda me dava dicas de livros, séries e filmes. O homem me dizia coisas incômodas, sempre traduzia meus sonhos para surubas e seu divã parecia ter agulhas ou espinhos pontiagudos (jamais esquecerei quando ele disse, seríssimo e bebericando um chá, que um bom sexo anal sem medo era a única coisa que resolveria uma síndrome de intestino irritável —o que em definitivo não era um convite, antes que algum desavisado deseje cassar o diploma de uma profissão sem diploma, era a sua explicação bem acurada (amo a vontade que tive de usar uma palavra com cu aqui, para sintomas advindos de perversões tirânicas recalcadas).

Durante mais de três anos, mantive os dois em minha vida. Empanturrada de associações e interpretações, comecei a me imaginar como aquele marido do conto de Nelson Rodrigues, obrigado a jantar na amante e depois na própria casa (ou era o contrário?). Me perguntei, afinal, qual deles era minha casa e qual era o amante? Ficaria com o amante, certamente. Sem conseguir responder, encerrei com os dois e hoje tenho apenas um psicanalista. Este sim, minha casa, meu amante e meu desejo de permanecer em algum lugar. E foi aí, meus amigos, que a coisa complicou de verdade. Mas fica para outro texto.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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