A suavidade de Tibagi

Agora entendo, com clareza, porque o Sérgio Mercer era a própria simplicidade, criatividade e doçura de pessoa. Sua personalidade foi talhada sob a sombra de uma figueira centenária e à margem esquerda do líquido pedregoso do Tibagi, que escondia (ou esconde) diamantes, pequenos, enormes, verdadeiros ou imaginários. Tem a paz das campinas e a altivez dos pinheirais.

Ali, em um pedacinho de cidade encravada em extenso município, deram forma à alma do Sérgio. Ali, em um berço centenário, conhecido desde 1754 como El-Dorado, se misturaram guaranis, contumazes adversários da Fazenda Fortaleza e também do desejo dos paulistas, os brancos, e seus escravos, negros, em se estabelecer nas cercanias. Ali chegou, em 1782, Antônio Machado Ribeiro, esculpindo a futura civilização, que virou Freguesia pela Lei nº 15, a 6 de março de 1864. O primeiro vigário, Frei Gaudêncio de Gênova, benzeu as terras em 1851. E o município foi instalado, sob as bênçãos do Vaticano, em 1872. Ali, também se mesclaram os Mercer, os Mello, os Carneiro, os Borba, e as pessoas simples e comuns, cujos nomes não ocupam galerias, mas, tanto quanto os sempre citados, edificaram a cidade…

Em Tibagi, de ruas empedradas que escorrem para o rio tipicamente paranaense, vivem 18 mil pessoas, das quais 10 mil na zona urbana. Pessoas de carne e osso, de espíritos abertos ou petrificados, com virtudes e defeitos, claro. O município é o maior em extensão territorial do Estado e dele já esgarçaram Reserva, Ortigueira, Telêmaco Borba e Ventania, entre outros. Mas a cidade, teimosa e tímida, não alarga suas fronteiras.

De arquitetura poética, realçada por pássaros, gatos, móveis rústicos e flores, flores, flores, uma pequena pousada garante o sono e o sonho dos que procuram o berço do Sérgio Mercer. Nele, Margarida, uma de suas primas, tece simplicidade e versos que fazem bem ao corpo e ao espírito. Perto, menos de 50 metros, uma pracinha guarda rituais do interior, com direito à fonte luminosa, coreto, frontal de igreja, senhoras rezadeiras e até o footing perdido em meio a um cipoal de nostalgia. A história jorra. Especialmente no bem organizado museu da cidade.

Ele guarda não só peças históricas, que estimulam a imaginação, mas originais raros em sua biblioteca, livros de autoria de Victor Hugo, João Guimarães Rosa e Euclides da Cunha, entre outros. No museu, estão fotos da época áurea dos diamantes garimpados no fundo do leito do Tibagi, assim como escafandros de ferro, pesados, antecessores da imagem moderna dos exploradores do cosmo. Candelabros, móveis, utensílios, quadros, documentos, vestimentas, imagens, medalhas religiosas brasileiras e estrangeiras, famílias arrumadinhas para fotos, coisas e pessoas amareladas pela sépia do tempo, dividem o museu, grudado no musgo do passado e no farol do presente.

Em ruelas de pedras ou descalças, na praça central, sob as sombras das figueiras e mangueiras, nas selas e estribos de cavalos e nas trilhas de tropeiros, em cortininhas de renda delicada nas janelas, no som oco do trotar, nos telhados cerzidos sobre casas acanhadas, no cochicho político, nos costumes simplórios e conservadores, no tempo escorrendo vagaroso, no lume de velas de procissões, no badalar dos sinos da igreja alta e larga para a necessidade dos crentes, nas soleiras de portas retraídas de tímido comércio, no som do silêncio, foi alimentada a alma, alegre, criativa e ébria de vida do Sérgio Mercer, agora entendo. E não só o seu, mas o perfil de uma gente.

Aquela que adora paçoca de carne, mistura de fatias de carne de boi sem gordura, pernil de porco, farinha e cheiro-verde. Ou quirera com costelinha de porco, bolo de polvilho… São comidas originadas nos alforjes dos tropeiros, nas cozinhas dos senhores das sesmarias dos campos gerais e dos pratos dos garimpeiros que sonhavam em encontrar ouro e diamante. A mesma gente que alimentou quimeras de esticar as fronteiras da cidadezinha histórica. Ou que vive sonhos entre as fendas magníficas do canyon do Guartelá ou em suas panelas de pedra ensopadas pelo rio Iapó. Contrariando versos de Drummond, êta vida boa meu Deus!

fevereiro|2006

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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