A humanidade impossível

Li, alguns dias atrás, no emaranhado de informações que me oferece o mundo eletrônico, uma notícia rápida, logo descartada pelos meus olhos cansados. O pequeno texto observava que um setor do bolsonarismo, dito “pragmático”, pretende emprestar ao seu líder, dito “mito”, traços de humanidade necessários à construção de uma imagem mais agradável aos eleitores convocados a se manifestar nas urnas – aquelas condenadas pelos terraplanistas – no segundo semestre deste ano.

Fiquei a matutar. Logo de cara, me soou estranha a combinação entre pragmatismo e bolsonarismo – algo como uma salada de tempero amargo, mistura de irracionalidade, estupidez e ódio. Que seja feita a tentativa, vá lá, mas ela se anuncia, desde logo, um fracasso retumbante. Não existe possibilidade de transformar Bolsonaro no que ele nunca foi: um ser caridoso, sensível, preocupado com a dor dos outros. Bolsonaro e humanidade são coisas que não se comunicam.

Recuperei, na memória, imagens horríveis do monstro, palavras de desprezo pelas tragédias que seu governo provocou, ajudou a provocar ou simplesmente acompanhou com frieza. Em todas essas ocasiões, que foram muitas, Bolsonaro gaguejou quando discursos preparados por suas assessorias o levaram a oferecer migalhas de solidariedade às suas vítimas. Foi evidentemente falso em seu desempenho, artista mequetrefe, constrangedor. Na maioria das vezes, os pronunciamentos vieram acompanhados de pontuações complementares, reveladoras da personalidade transtornada do chefe, que procuraram relativizar os dramas coletivos, transferir responsabilidades e vulgarizar a morte.

Bolsonaro é o absurdo convertido em poder, o retrato de um tempo sombrio. Seus crimes continuados, diários e massacrantes foram absorvidos pelo “sistema”, que o tolera. O ser repulsivo vai cumprir a integralidade do mandato que lhe foi dado. Não deveria. Voto popular não é passaporte para tudo, não é licença para a avacalhação da República. São as regras do jogo que dizem isso, e não eu. Regras postas numa constituição que agoniza, com a chancela de homens de farda, toga, terno e armas nas suas mãos sujas de sangue. O silêncio covarde das instituições é cúmplice da barbárie.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Mário Montanha Teixeira Filho e marcada com a tag , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.