Inédito: aqui vai um texto que não emite uma opinião

Tendo a ficar do lado dos ucranianos e a condenar com veemência os ataques russos, mas não sou especialista em nada

Os opinólatras nada anônimos comentam a guerra entre Rússia e Ucrânia com a mesma naturalidade com que costuram conjecturas definitivas sobre o esquema tático que rendeu dez vitórias seguidas ao Fluminense. Passam pela eficácia da vacina, pelo processo judicial de Lula e pelo equinócio de primavera carregando a mesma verdade incontestável.

Afinal, o que quer Vladimir? Mergulhei em artigos, reportagens, documentários. Numa guerra que acontece em tempo real nas janelas das redes sociais, garimpei memes, selfies, comentários. Fiquei intrigado com o uso que a Ucrânia está fazendo do Twitter, com os vídeos que exaltam Volodmir Zelenski no TikTok.

Enquanto as informações decantavam no meu cérebro, ainda sem conseguir encadear um raciocínio, deu-se uma epifania: num momento de lucidez, percebi que não sei opinar sobre essa guerra. Foi libertador.

Isso significa uma omissão? Não sei opinar. Tendo a ficar do lado dos ucranianos e a condenar com veemência os ataques russos. Mas é um raciocínio muito superficial para justificar uma coluna. Não sou especialista em geopolítica, economia, estratégias militares, história, criptomoedas, oligarcas russos. Muito menos em fertilizantes.

Costumo ocupar este espaço com textos de humor e fui visitado por outra questão. Afinal, é possível fazer piada com um conflito dessas proporções? De novo, não consegui formular uma opinião. Devo ter batido algum recorde.

Enquanto milhares de pessoas ao redor do mundo protestam contra a guerra, o jornal britânico Daily Mail criticou nosso Carnaval. Bolsonaristas foram às redes sociais atacar a cobertura da imprensa, sempre atenta às aglomerações promovidas pelo presidente e que agora se abstém de criticar o fuzuê momesco.

É justo que uma maioria vacinada aproveite a curva descendente da ômicron para dar vazão a essa incontida catarse coletiva tanto tempo represada? Sinceramente, não sei.

Enquanto os opinólatras nada anônimos vão desfilando seus diagnósticos e movimentando os algoritmos, os debates vão perdendo profundidade e os especialistas são silenciados em meio a toda essa algaravia. Os contextos vão desaparecendo na velocidade do TikTok. Todo mundo fala e pouca gente ouve.

Mas o meme gira e o algoritmo não para. Em breve, o próximo assunto vai surgir para saciar essa sanha opinadora. Não haverá abstinência.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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