‘Bora escrever!

Há um momento exato em que o escritor percebe que a história ganhou pernas próprias e que estas fogem do seu controle. Enveredam por um caminho novo ou para um desfecho que não estavam ali antes, quando a primeira ideia surgiu na mente e o levou a rabiscá-la. É também quando o texto flui mais rápida, espontânea, gostosa e magicamente da cabeça e dedos à tela. Apesar de todo o lirismo empregado na embalagem de tal descrição, esse é um exercício muito prático e real, que brota do hábito de simplesmente sentar e começar a escrever o que se pensa, no ritmo ditado pela velocidade dessas divagações.

Já na primeira aula e em meio às provocações iniciais, uma dica vem desenhada de maneira tão lógica quanto profunda: é escritor quem escreve. Bingo! Parece óbvio, né? Então, encare! O compromisso ditado era de construir pelo menos uma página e apenas uma única página de texto todo santo dia.

– ‘Bora lá! Ele disse a si mesmo, engolindo às pressas o café que esfriava na xícara e com os olhos, ouvidos e olfato determinados a buscarem ao redor uma situação digna de ser contada e, por derivação, de ser lembrada nesse exercício literário. O que você enxerga da sua janela neste instante, questionava o professor aos seus alunos, cujas participações se alternavam entre quadros animados, desanimados e outros, de fundo escuro, onde apenas se conseguia ler os nomes dos prováveis interessados ausentes. Aliás, nosso autor acompanhava apenas a gravação de uma aula que já havia sido ministrada e, à exceção dele, tudo o mais já não se fazia presente. Até a interação estava conjugada no passado.

Enxergava apenas as distâncias que cabiam na resposta à indagação do professor. Inclusive aquela por vencer, até ultrapassar os próprios limites e alcançar a tal janela. Ainda impregnado por barreiras físicas e pelas coisas táteis que estavam ao seu redor, os aromas e toda espécie de bloqueios ou de âncoras entre as projeções e suas concretudes, percebia inicialmente apenas o que se encontrava disposto dentro do seu espaço, naquela sua zona de conforto, pode-se assim dizer.

A janela estava fechada… Uma chuva repentina e muito pedida em orações, depois de quase dois anos de uma escassez rigorosa de água na cidade, ornava de gotas a estrutura à sua frente. Eis a chuva! Nem se deteve por muito tempo, mas deixou suas marcas molhadas no vidro, que logo mais secarão na superfície, restando apenas os rastros de sua passagem em desenhos secos da mistura de água com pó e das fuligens que viajaram longas distâncias nas asas de um vento preciso.

Não se atrevia a avançar para observar além da vidraça. O coração batia e queimava acelerado de apreensões. Havia inúmeros apelos da janela para dentro, que retardavam aqueles passos, distraíam e roubavam sua atenção. Mesmo o barulho no apartamento vizinho lhe dava um puxão repentino para dentro do ambiente. Será que queria mesmo sair e aventurar-se em espiar aquele leque desconhecido de possibilidades que habitavam o lado de fora?

Deteve-se a observar os discos, os livros, o rádio de aparência antiga e as quinquilharias que uma mente bagunçada, desorganizada, espalhara e entulhara pelos cantos. Olhou para aquelas coisas inacabadas, pensou que bem poderiam ser sinais de um certo transtorno de acumulação e próprias das dificuldades de desapego… Carência exponencial gritava daquela bagunça toda.

Cada palavra ali era uma marca e uma sinalização da identidade retumbante que habitava o espaço. O que uma chave de fenda fazia solta, próxima, perdida e a colecionar pó apenas? Lembrava de tê-la usado para apertar um parafuso espanado no assento da cadeira do escritório… Estava quase atingindo a meta da aula de redação – escrever uma página – e nem havia ultrapassado a janela fechada. Adiantou, com todo cuidado, um olhar para fora daquele espaço, da segurança, do conforto, da bagunça do seu mundinho e da sua arduamente cultivada quietude, que era rompida apenas pela MPB tocada na rádio. “Rádio”, hoje em dia, é somente um modo de dizer. Ele sintonizava uma estação pelo seu telefone celular e, por meio da tecnologia, o som ganhava liberdade através das caixas acústicas – aí, sim – do seu aparelho de rádio.

Mas e a janela? A janela o encarava com ar de quem pergunta se ele a havia esquecido, abandonado ou se estaria por capricho apenas a ignorá-la? Nem se ouvia mais os barulhos da chuva, os chuviscos eram silenciosos. Os galhos e as folhas das árvores, lá fora, também se balançavam discretos. Saiu! Foi inesperado, natural, espontâneo e desapercebido. Quando deu conta de si, já havia vencido a barreira dos receios ou de qualquer coisa que o reteve por inúmeras e mais linhas de sofrimento, preso dentro de si.

Saiu sem se mexer exatamente e foi levado por um impulso invisível a movimentar-se. Percebeu-se livre daquela fronteira imaginária, erguida e sustentada por apreensões, egos e outras formas de aprisionar um espírito que só deseja integrar-se ao quadro todo e ser inteiro conectado. Não existe um “lá fora” ou um distante e isolado “aqui dentro” quando se percebe integrado e íntegro em indeterminado ambiente. Nem limites físicos que impeçam de atingir e de transcender para onde habitam desejos e aspirações de completude. É o que a janela está lhe dizendo e lhe ensinando com seus pingos, a partir da aula e sob o direcionamento mágico do professor que lhe pede para exercitar aquelas abstrações.

E quase que ele supera em uma página inteira a meta pedida no exercício literário. Simples assim!

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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