Alvarenga e Ranchinho – Drama de Angélica

Ouve meu cântico
Quase sem ritmo
Que a voz de um tísico
Magro esquelético
 
Poesia épica,
Em forma esdrúxula
Feita sem métrica,
Com rima rápida
 
Amei Angélica,
Mulher anêmica
De cores pálidas
E gestos tímidos
 
Era maligna
E tinha ímpetos
De fazer cócegas
No meu esôfago
 
Em noite frígida,
Fomos ao Lírico
Ouvir o músico
Pianista célebre
 
Soprava o zéfiro,
Ventinho úmido
Então Angélica
Ficou asmática
 
Fomos ao médico
De muita clínica
Com muita prática
E preço módico
 
Depois do inquérito,
Descobre o clínico
O mal atávico,
Mal sifilítico
 
Mandou-me o célere,
Comprar noz vômica
E ácido cítrico
Para o seu fígado
 
O farmacêutico,
Mocinho estúpido,
Errou na fórmula,
Fez despropósito
 
Não tendo escrúpulo,
Deu-me sem rótulo
Ácido fênico
E ácido prússico
 
Corri mui lépido,
Mais de um quilômetro
Num bonde elétrico
De força múltipla
 
O dia cálido
Deixou-me tépido
Achei Angélica
Já toda trêmula
 
A terapêutica
Dose alopática,
Lhe dei uma xícara
De ferro ágate
 
Tomou no fôlego,
Triste e bucólica,
Esta estrambólica
Droga fatídica
 
Caiu no esôfago
Deixou-a lívida,
Dando-lhe cólica
E morte trágica
 
O pai de Angélica
Chefe do tráfego,
Homem carnívoro,
Ficou perplexo
 
Por ser estrábico
Usava óculos:
Um vidro côncavo,
Outro convexo
 
Morreu Angélica
De um modo lúgubre
Moléstia crônica
Levou-a ao túmulo
 
Foi feita a autópsia
Todos os médicos
Foram unânimes
No diagnóstico
 
Fiz-lhe um sarcófago,
Assaz artístico
Todo de mármore,
Da cor do ébano
 
E sobre o túmulo
Uma estatística,
Coisa metódica
Como Os Lusíadas
 
E numa lápide,
Paralelepípedo,
Pus esse dístico
Terno e simbólico:
 
“Cá jaz Angélica,
moça hiperbólica
beleza helênica,
morreu de cólica!”

Muitos anos antes da celebrada música “Construção” de Chico Buarque (1971), Alvarenga já usava o recurso dificílimo de compor as rimas em proparoxítonas, dividindo a obra ainda em quatro atos, como numa peça teatral. Obrigado Klévisson Viana, por termos cantado partes da bela música de Alvarenga e Ranchinho numa viagem de Parnaíba até Teresina.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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