Jô Soares, uma recordação pessoal

A frase foi criada por ele mesmo, e o resto está no filme. Rodamos em menos de uma hora. Antes de ir embora, disse: “Ponha nos créditos: ‘Jô Soares, participação afetiva’. E é assim mesmo que consta no filme. Naturalmente, era uma alusão ao fato de que não tinha cobrado um único centavo pela participação. Depois de pronto, gostou muito do filme, me chamou para o programa dele e fez o possível para divulgar Sábado, que aliás foi muito bem e até hoje passa no Canal Brasil

No começo da década de 90 estava eu nos estúdios lendários da antiga Companhia Cinematográfica Vera Cruz, filmando. O filme se chama Sábado e transcorre todo durante um dia de sábado, dentro de um edifício quase totalmente reconstruído no local. Faltava pouco mais de uma semana para se esgotar o prazo de entrega dos estúdios de volta para a Prefeitura de São Bernardo do Campo, que nos tinha permitido filmar lá. Nessas ocasiões um set de filmagem fica ainda mais agitado, todos pensando unicamente no prazo que deveria ser cumprido a qualquer custo.

No meio da aparente confusão se aproximou de mim um assistente dizendo: “Tem um cara no telefone que diz que é o Jô Soares e quer falar com você”. Imediatamente, olhei para o lado e vi o ator Otávio Augusto, que também participava do filme, calmamente sentado, consultando seu roteiro. Isso me mostrou que não era ele o autor do telefonema.

Uma das façanhas preferidas do Otávio era ligar para alguém e, voz solene e empostada, pedir para falar com o “responsável”. Esclarecia que quem falava era, por exemplo, o ministro das Relações Exteriores do Brasil. Eram interpretações tão convincentes, que frequentemente alguém chegava ao telefone esbaforido já dizendo: “Pois não, Excelência”.

Dessa vez, evidentemente, não era ele, e ao som da primeira frase proferida, percebi que era realmente Jô Soares. Disse mais ou menos o seguinte: era admirador entusiasta de Festa e, ao saber que eu estava rodando outro filme, queria fazer parte dele de algum modo. Na verdade, disse: “Eu vou participar dele. Você me escreva o roteiro e me mande”. Não adiantou nada eu retrucar que o filme estava quase no fim, tínhamos de entregar o estúdio e possivelmente eu não teria tempo de criar um papel para ele. “Não aceito desculpas. Já estou esperando o roteiro”. E com uma risada desligou o telefone.

A equipe, pelo menos os que souberam do telefonema, não me deu mais paz. “É o Jô, você entende? Ele pede pra participar e você vem com conversinha?!” “Senta nessa máquina, escreve essa porra logo!” Foi o que fiz. Lembrei que havia um personagem possível entre os moradores que faziam um churrasco no terraço do edifício e finalmente acabariam por consertar o elevador enguiçado desde o início da filmagem. Esse personagem era apenas um figurante sem falas, que morava justamente na casa de máquinas do elevador.

Ficou fácil dar o papel para o Jô. Acrescentei algumas falas que não existiam, ele veio, gostou do personagem e pronto. Lá estava ele, devidamente vestido e maquiado, fazendo um marginal, ou marginalizado, sentado ao lado das máquinas. Quando entram os outros “mecânicos” para consertar o elevador, ele Já dispara: “Mas o que isso? Vão entrando assim? Isso aqui é a cobertura, entende? A cobertura.”

A frase foi criada por ele mesmo, e o resto está no filme. Rodamos em menos de uma hora. Antes de ir embora, disse: “Ponha nos créditos: ‘Jô Soares, participação afetiva’. E é assim mesmo que consta no filme. Naturalmente, era uma alusão ao fato de que não tinha cobrado um único centavo pela participação. Depois de pronto, gostou muito do filme, me chamou para o programa dele e fez o possível para divulgar Sábado, que aliás foi muito bem e até hoje passa no Canal Brasil.

Assim era o Jô Soares. Quando fiz Boleiros, fui ao programa de novo. Enfim, ficamos um tempo próximos. Depois só o vi raramente em alguma estreia de teatro ou de passagem, num restaurante italiano que havia na Praça Vilaboim. Dei com ele muito depois, num programa Bola da Vez, da ESPN, quando devia falar de futebol, mas falou de tudo. Perguntado sobre cinema, apontou Sábado como um dos raros filmes de que tinha gostado, tanto do filme quanto de sua participação pessoal. Falou, é claro, de futebol, principalmente de seu Fluminense, que, mesmo depois de tantos anos ele morando entre nós aqui em São Paulo, continuou seu time inesquecível.

Morreu recentemente. Senti muitíssimo.

Ugo Giorgetti

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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