Com uma frase, ela detonou a autocomiseração, o choro brotou tímido, depois repetiu o mote, até espremer algumas gotas
“E tudo isso por nada! Por Hécuba! O que é Hécuba para ele, ou ele para Hécuba, para que chore assim por ela?”, “Hamlet”, ato dois, cena três. Shakespeare sabia. A lágrima do ator tem altíssimo valor de mercado.
Para o intérprete, não basta, é claro, vertê-la sem dar conta do personagem. Existem casos, fenômenos fisiológicos que se debulham com impressionante facilidade, mas não convencem na pele de outro. E existem, também, aqueles que convencem, mas não choram.
Pode-se simular um esgar, um desdém, uma alegria profunda ou raiva acumulada sem grandes malabarismos técnicos. A ciência atesta que o sorriso fingido não aciona todos os músculos faciais tensionados pelo franco, mas a diferença é imperceptível para o espectador comum.
A lágrima, no entanto, é o milagre concreto do sentimento, secreção de milhões de circuitos sinápticos, memórias cavadas no tempo, que terminam por produzir uma mistura de água e sais minerais, excretada pelo canal lacrimal. A lágrima é a prova física da emoção. Ou você dá conta dela, ou não dá.
Em “Corra”, filme de Jordan Peele, a sogra racista hipnotiza o candidato a genro girando uma colherzinha de café na xícara. Um carrinho, plano-sequência sem truques ou cortes, avança lento, na direção de Daniel Kaluuya. Conforme a lente se aproxima, os olhos dele marejam, até explodirem num choro descontrolado.
Por certo, o racismo de que trata o filme foi um dos gatilhos que levou o ator a atingir aquele estado abismal de medo e fragilidade, mas suspeito que não só. A tomada é um raio-x assombroso da alma de Kaluuya e fez história.
O close final de “Noites de Cabíria”, de Federico Fellini, é outro lacrimoso instante sublime da sétima arte. Depois de sofrer o diabo, Giulietta Masina caminha pelo parque escuro e, sem aviso prévio, rompe a quarta parede, nos encara com os olhos umidíssimos e… sorri com a inocência intacta.
Faço essa longa introdução sobre o pranto nas artes, talvez para esconder a vergonha do real motivo da crônica. Admito, sem orgulho, ter me viciado no julgamento de Johnny Depp e Amber Heard, transmitido ao vivo pela internet.
Amber não possui o carisma do ex-cônjuge e parece ter forjado evidências para chantageá-lo na separação. Conta, no entanto, a favor da moça, a difícil convivência com um homem mais velho e poderoso do que ela, dependente confesso de álcool e drogas.
Por se tratar de dois atores, o caráter teatral do tribunal se impõe.
O cavalo de Jack Sparrow foi Jack Sparrow nas acareações. Misterioso, irônico e sedutor, Depp brindou o júri com uma compilação de seus melhores momentos na tela. Investido da dignidade dos loucos, o astro confirmou o uso e abuso de substâncias lícitas e ilícitas, jurando, em plena era do MeToo, ser vítima das calúnias e agressões de uma maníaca depressiva oportunista.
Chegou, então, a vez de Amber narrar a sua versão do conturbado, e curto, casamento, vivido entre ilhas paradisíacas nas Bahamas, mansões na Austrália, rehabs no Caribe e coberturas cinematográficas em Los Angeles. Uma vida comparável à dos deuses do Olimpo, irresistível ao voyeurismo de mortais como eu.
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