“A Venezuela se arrumou”, repetem por aí os líderes chavistas.
Parte da classe média e os poucos visitantes que vão a Caracas aceitam essa frase, propagandeada pelo regime, como normal. Desde a aceitação do dólar como moeda “informal” do país, voltaram a abrir restaurantes, lojas de roupa e de carros de luxo, enquanto torres começaram a subir no leste da cidade. Há até mesmo os chamados “cassinos socialistas”, que funcionam também em dólares. O mais badalado funciona no recém-reformado e mítico hotel Humboldt, no alto do emblemático Ávila.
O discurso de que a “a Venezuela se arrumou” (“Venezuela se arregló”, em espanhol), é obviamente mentiroso. Seria possível enumerar vários fatos que desmontam a frase.
Segundo a Provea (Programa Venezuelano de Educação e Ação em Direitos Humanos), no ano passado 1.414 pessoas foram vítimas de execuções extrajudiciais, a maioria delas pelo Faes (Forças de Ações Especiais, um grupo de elite da polícia) e pelo Conas (Comando Nacional Antiextorsão e Sequestro, vinculado à Guarda Nacional Bolivariana). Falta comida e remédios para a maioria da população, já saíram do país quase 7 milhões de venezuelanos, segundo dados da ACNUR (Alto Comisionado das Nações Unidas para os refugiados), enquanto a natureza e o homem padecem a dilapidação do chamado “Arco Mineiro”, explorado sem lei nem regulamentação que garanta a saúde dos que apostam a vida aí.
Mesmo assim, o bordão vem sendo usado com frequência como parte de uma diplomacia que tem como intenção maquiar a situação em que vivem os venezuelanos, criando um discurso em que se vê uma espécie de melhora: as últimas eleições, cheias de irregularidades, mas, enfim, eleições com participação da oposição, o fato de o dólar ter criado bolhas de riqueza e de ostentação, como a do bairro de Las Mercedes, em Caracas, num momento em que há uma perspectiva de flexibilização das sanções impostas pelos EUA ao país, em troca de petróleo.
Esta última por ora é apenas uma hipótese, mas já animou a ditadura. Afinal, os EUA, que reconhecem, ainda, oficialmente, o líder opositor Juan Guaidó como presidente, deram sinais de desejar uma reaproximação econômica com o ditador do país, depois de iniciada a invasão da Ucrânia e a possibilidade de os norte-americanos precisarem do petróleo venezuelano.
Compram esse discurso países como Argentina e México, cujos líderes, Alberto Fernández e Andrés Manuel López Obrador, assumiram certa defesa do regime, e outros aliados da esquerda regional, que preferiam, por exemplo, a retomada da Unasul, em vez de fóruns como a Cúpula das Américas, esvaziada.
neste ano pela recusa dos EUA em convidar países considerados ditaduras (Venezuela, Cuba e Nicarágua), assim como os da América Central (El Salvador, Honduras e Guatemala), com quem o país do norte vive fricções por conta da imigração ilegal.
Em uma conversa com o podcast da Americas Quarterly, o editor do Caracas Cronicles, Raúl Stolk afirmou que a capital venezuelana está muito mais bonita que há alguns anos atrás, e que deixaram de ocorrer apagões e tantos sequestros na cidade. “Mais as coisas estão melhores? Claro que não. Há muito mais desigualdade. Se há alguns que podem comer nesses restaurantes caros e comprar Ferraris, a imensa maioria está ainda mais pobre. Mas é certo que desde 2019, quando o regime liberou o uso de dólares na economia popular, um certo entusiasmo tomou conta da classe média, cuja vida parece ter normalizado, embora seja uma normalização superficial”, afirmou. “Por outro lado, as pessoas se cansaram de tanta manifestação, tanto ato, que se mostraram intensos em 2014, 2017 e 2019, com a sugestão de mudança que Guaidó representou. Agora a desconexão com a política é total para os que não estão na bolha consumista. A preocupação é sobreviver”, acrescenta.
A chuva de dólares no país vem de distintas formas. Com a saída de tanta gente, principalmente depois de 2014, aumentaram as remessas. Cheios de sanções para viajar, funcionários e empresários chavistas resolvem gastar e até investir dentro do próprio país. O comércio ilegal de distintos produtos também favorece a um número significativo de gente. Os que podem sair do país e trazer produtos e moedas, também o fazem.
O regime também se aproveita, de certo modo, do abandono mediático do país. Enquanto havia protestos, Guaidó levando gente às ruas, a comunidade internacional parecia mais preocupada do que hoje. Mesmo os grandes meios de comunicação mostram um cansaço com a questão venezuelana. De certa forma, isso reforça a tese de que “a Venezuela se arrumou”.
Para a maioria dos venezuelanos, porém, não há arrumação nenhuma. A maior parte da população vive de subsídios, bolsas assistenciais de, no máximo, US$ 4, salários mínimos de US$ 2 e caixas CLAP (comida distribuída seletivamente pelo governo). A economia encolheu mais de 80% desde que Maduro assumiu, em 2013, e o bolívar foi devorado pela hiperinflação.
O caminho para uma real recuperação econômica, política e institucional levará mais tempo e não bastará dolarizar o país.