A vida da bailarina

© Alberto Melo Viana

No mundo somos muitas as almas e diversas – diria o nunca assaz louvado Conselheiro Acácio, com suas certezas vulgarmente conclusivas, e melancólicas. Ao embalo dessas fugacidades, fico sabendo que o melhor do acervo fotográfico da para mim imortal amiga e “ballerina” Rita Pavão (1953-2006), está agora sob a guarda oficial do Teatro Guaíra. 

Painéis assinados, entre outros, por Alberto Viana, Júlio Covello, Karin van der Broock, Luciana Petrelli, mágicos e oficiantes do que os jornalistas d’antanho chamavam de “a arte do clic”, foram inteligentemente doados, ao museu de nosso mais importante teatro, por Reginaldo Fernandes, ele próprio um contumaz do ofício. E dos perfis de Rita Pavão.

Rita era singular. Nosso derradeiro encontro foi no centro nervoso da city, às três da tarde. Me agarrou a pele do braço com força, numa urgência carente e aturdida, mais que o burburinho das três da tarde no centro da cidade. Contudo, leitor e leitoras, não desviemos: excitação, sim, mas criativa, cheia de sonhos, planos, delírios. Queria dançar o mundo a bailarina Rita Pavão.

Pedi a ela menos atropelo e ela me respondeu então com novas urgências, desta feita, pessoais. Nós nos amávamos de um modo esquivo e apaixonado. Fez, em 92, de meu livro de estréia, Bolero’s Bar, um bailado cheio de graça e liturgia pagã. Pôs no palco, do artista quando jovem, este vosso escriba inteiro: dos vômitos públicos, que lavaram a Cruz Machado, ao amor clandestino por entre a neblina fria; da solidão do pardal molhado de domingo ao cão íntimo que vos destroça a segunda-feira em dez.

Bailaram, no Sesc da Esquina, Rita e suas ninfas, o texto em off; a música, puro cristal. Na platéia, inflei, no escuro. Bebíamos muito um tempo; bebíamos pesado. Era o jeito que a nossa mocidade mais moça encontrara para não sucumbir ao alagadiço da Curitiba congelada no tempo, ainda cartorial, ainda ameaçadora. Rita Pavão, o lábio vermelho tinto, em cima do salto, reinventava, por exemplo, numa surpreendente saia godê, em tecnicolor reinventava pela cidade o cinema americano. Rita, eu sinto muita saudade de você, desde que você se atrapalhou com a janela do edifício e apagou, de puro pânico, o coração. Que, a rigor, não era seu, mas principalmente nosso, feito um quasar – dançarino; e barroco. O anel que tu me destes era vidro e se quebrou… Você quis rasgar o peito à unha, Rita, quando imaginou a fera maior que você. Talvez não fosse.

É por isso, por seus medos – que continuam sendo os de todos nós – que eu sinto muita saudade de você. Acho que não precisava ser assim nem desse jeito. Você errou de estratégia; e de estação. E virou fotografia.

21|06|2009

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Requiescat in pace

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Cultura híbrida: cultura viva

O problema da apropriação cultural é justamente o conceito

Semana passada surgiu mais uma polêmica nas redes sociais: usar o boné do MST, mas não fazer parte do movimento, é apropriação cultural, logo, esvazia o sentido da luta do MST. A apropriação cultural seria um problema porque não haveria consciência política quando um grupo dominante usa símbolos de um grupo dominado: o uso é desinteressado, apenas estético, mera moda.

Ora, mas a política não é o centro gravitacional da vida da maioria das pessoas. Ainda bem. Caso contrário, seria uma sociedade paranoica. Imagine pensar em navios negreiros sempre que comemos feijoada ou ouvimos Cartola. Exigir que a política perpasse todas as práticas do dia a dia é polícia do pensamento, moralização punitiva do cotidiano, ou seja, um puritanismo laico.

Outro problema é ignorar como a difusão proporcionada pela indústria cultural dá visibilidade a produtos simbólicos de grupos sociais marginalizados e, assim, pode ser usada para valorizá-los. Do jazz ao hip hop, do samba ao funk carioca, o que vimos ao longo da história foi o aumento do consumo desses estilos musicais seguir pari passu à diminuição do preconceito. Claro que ainda há preconceito, mas é um fato histórico que o samba era mal visto nos anos 30 e, hoje, é enaltecido.

Por fim, alguns fundamentos dessa noção de apropriação cultural vêm de teorias europeias ultrapassadas (como as da Escola de Frankfurt), de uma formação cultural bastante diferente da nossa, na qual as delimitações entre erudito e popular, nacional e estrangeiro, são bem mais rígidas. Seria melhor olharmos para novos aportes teóricos de pesquisadores latino-americanos.

Ao analisar diversos casos de hibridismos culturais na América Latina, o antropólogo argentino Néstor García Canclini conclui: “O artesanato migra do campo para a cidade; os filmes e canções que narram acontecimentos de um povo são intercambiados com outros. Assim, as culturas perdem a relação exclusiva com seu território, mas ganham em comunicação e conhecimento”.

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O mundo como vontade, representação e espanto

A edição é de 1960 — achei num sebo. O livro é O pensamento vivo de Schopenhauer, com introdução de Thomas Mann. Calma, não vou tagarelar sobre a obra máxima do filósofo. Vou falar dos leitores primeiros que brindam os seguintes com riscos, estrelinhas, interrogações, exclamações, frases sublinhadas e outros rabiscos.

Rabiscar um livro, pra quê? Mostrar muque? Concordar com o autor? Ombrear com o autor? Desafiar o autor? Imagino que, se você tem uma mulher e gosta dela, deveria pegar uma caneta e assinalar as partes que mais gosta! Ah, gosto do cotovelo — sublinho! Ah, a patela é ótima! Três exclamações! E vai por aí.

Neste caso, o livro mostra que passou por mais de um leitor, pois são várias cores de caneta. Caneta, ainda por cima! Por que não lápis, pra ser fácil de apagar? O que mais me chamou a atenção é que a frase sublinhada com mais força não é do Schopenhauer. Ele extraiu de uma carta de um tal Howitt publicada num jornal em 1855. Pra falar dos conflitos entre seres vivos, a carta cita o caso da formiga-buldogue — da Austrália. Se uma viva é cortada em duas, a metade anterior pega a própria cauda com os ferrões e a cauda se defende com o aguilhão. Agarram-se com toda força e o combate chega a durar meia hora.

O mais engraçado é que outros autores de livros sobre os nossos eternos conflitos também já citaram esse caso e dizem que tiraram do livro O mundo como vontade e representação, do Schopenhauer.

Outra história incrível é o dos Ichneumonidas, que preferem ficar no anonimato porque a mãe deles põe ovos dentro das larvas de outros insetos e seus filhotes, quando eclodem, comem as lavras vivas.  Rabiscar um livro seria pôr ovos próprios no corpo dele Tudo em nome da sobrevivência.

Daniel Pennac, em Como um romance, traça os Direitos Imprescritíveis do Leitor:
1.  O direito de não ler
2.  O direito de pular páginas
3.  O direito de não terminar um livro
4.  O direito de reler
5.  O direito de ler qualquer coisa
6.  O direito ao bovarismo
7.  O direito de ler em qualquer lugar
8.  O direito de ler uma frase aqui e outra ali
9.  O direito de ler em voz alta
10.  O direito de calar

Eu aprovo todos. Por sorte não tem o direito de riscar o livro pra fazer muque. Que acho uma bobeira sem tamanho.

*Rui Werneck de Capistrano é autor de Nem bobo nem nada, romancélere de 150 capítulos

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Janelas e fugas

Venho, há tempos, formatando um conceito e um paralelo mais elaborados dessa associação. Janelas e fugas têm a ver com projeções, com anseios, distrações; Têm a ver com viagens e com as estações e suas escolhas: de onde partir? Onde aportar?

De um lado, o presente confunde-se e carrega seu passado. Do outro, emerge do enquadramento da paisagem o vislumbre de um futuro alcançável pelos passos e sinalizações que se apresentam e que presenteiam pela soma evolutiva galgada até ali.

Janelas inspiram e arrancam suspiros entranhados na alma da gente; Discretas ou indiscretas, são humanamente sinceras em seus murmurinhos, lamentos e cochichos. Também assoviam canções, que não têm letra, nem sempre fazem sentido, mas que carregam o vento dos ares de uma familiaridade incompreendida e inesquecível. Porque é cercada de mistérios e de oportunidades para a mente vasculhar, tecer descobertas ou alçar voos criativos, com coração acelerado e convidativo. Janelas transportam e libertam emoções aprisionadas por receios, incertezas, inseguranças e cômodas inconsciências.

A paisagem que corre veloz do lado de fora sempre me convida a brincar de se perguntar: se eu parasse o veículo neste ponto aleatório da estrada, que cabe na ponta e na distância do dedo, e me embrenhasse na paisagem retratada neste restrito instante, que destinos se descortinariam de tal impulso arbitrário? Quanta vida e informações se agregariam, quantas apropriações e pertencimentos derivariam do que parece ser um gesto impensado, tolo, inconsequente ou até mesmo descabido?

Janelas escondem e revelam uma vida que, lá fora, passa de bicicleta, em carros de bebês, carrinhos de catar papel ou conduzindo animais de estimação. Ela só passa, isolada ou repartida, ao tempo e à percepção dos olhares curiosos e encantados que a observam. Simplesmente passa. E as janelas captam, congelam, armazenam com suavidade esses registros.

Se fechar meus olhos, posso imaginar que, depois da moldura da janela do Casarão, o passado ainda está vivo e que, à surdina, rende homenagens a esse presente-futuro que o vinga e lhe cura algumas feridas. Outras permanecem e repartem missões e responsabilidades. Tudo se resume em ser semente em um solo fértil de resgates, aprendizados e de evolução.

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#ForaBozo!

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Flagrantes da vida real

RádioCaos: Samuel Ferrari Lago e Rodrigo Barros del Rei: se não for divertido não tem graça. © Maringas Maciel

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Padrelladas

Diário da gripezinha

Um cheiro de pterodátilos invade a casa. Preciso saber onde esses bichinhos se escondem. Se me distraio, mordem a mobília, meus tapetes, meus ais. Pela manhã fingem que não foram eles, mas o pinheiro do Bakun não ia tombar por si. Caminho pela sala cheia de cisco, da batalha travada contra essas imensas aves. Seriam, talvez, corujas, mas piavam feito pterodátilos e para mim eram pteros, talvez não necessariamente dátilos, e faziam algazarra de alegrias, como se a batalha estivesse ganha.

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Filmes estalando de novos

Mesmo produzidos há décadas, eles têm uma gramática básica que nos faz vê-los sem estranhamento

“O Poderoso Chefão”, filme de 1972 de Francis Ford Coppola, fez 50 anos. Cinquentinha! É incrível, e mais ainda porque, visto hoje —e pela primeira vez para muitos—, seu impacto, ritmo e gramática parecem não trair esse meio século. Em contraste, nós que o vimos no lançamento sabemos como era, em 1972, assistir a filmes de 50 anos antes, de 1922. Por mais fabulosos, e mesmo que de Murnau, Abel Gance ou Erich von Stroheim, só tinham direito à telinha de 16 mm dos cineclubes ou à sessão de meia-noite num cinema de arte. Eram quase uma expedição à pré-história.

Os clássicos dos anos 30, vistos hoje, também costumam acusar idade. Os 30 foram uma década instável para o cinema, de muitas adaptações técnicas —ao som, ao Technicolor de três cores, à montagem mais dinâmica. Mas, dos anos 40 para cá, os filmes dominaram uma sintaxe básica que faz com que, exceto pelos cigarros e chapéus, possamos vê-los sem estranhamento.

De 1942, por exemplo, são “Casablanca”, de Michael Curtiz, “Contrastes Humanos”, o maior filme de Preston Sturges, e “O Fogo Sagrado”, de George Cukor. De 1952, “Cantando na Chuva”, de Gene Kelly e Stanley Donen, “Assim Estava Escrito”, de Vincente Minnelli, “Matar ou Morrer”, de Fred Zinnemann, “Scaramouche”, de George Sidney, “Desejos Proibidos”, de Max Ophuls.

De 1962, “O Milagre de Ana Sullivan”, de Arthur Penn, “Sob o Domínio do Mal”, de John Frankenheimer, “Lolita”, de Stanley Kubrick, “Lawrence da Arábia”, de David Lean, “Aquele que Sabe Viver”, de Dino Risi, “Boccaccio ’70”, de Fellini, Visconti e De Sica.

E 1972 não se limita a “O Poderoso Chefão”. Muitos filmes daquele ano continuam estalando de novos até hoje: “Cabaré”, de Bob Fosse, “Gritos e Sussurros”, de Ingmar Bergman, “Tudo que Você Sempre Quis Saber sobre Sexo…”, de Woody Allen, “Estado de Sítio”, de Costa-Gavras, “Avanti!”, de Billy Wilder. E ponha estalando nisso.

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Perder-me, dissolver todos os tecidos da pele, refazer-me. Em um segundo, passo do sonho ao concreto, deixo as cicatrizes mais profundas, abro outras, sangro por todas as frestas, desapareço.

Um dia paisagem, sol, plano. Uma vida toda.

Num instante, o céu muda, o vento sopra.

Prenúncio de tempestade.

Caí no abismo sem fim, percebi a veia dilatada do meu pulso, os olhos cheios de silêncio e lágrimas.

Percorri as pausas das linhas das mãos, abri as janelas, escancarei todas as dores e revirei as palavras − dissecando letra por letra as últimas escritas − as que revelam, as que maltratam, as que fazem acontecer a cisão.

Encontrar, um dia, quiçá, as flores abertas no jardim, sentir novamente o cheiro dos jasmins à noite, parar o horizonte e ver nos seus olhos a intensidade da certeza, o meu reflexo na sua pele interminável, o porto-miragem compassado às batidas do coração.

Em um dia, por uma vida inteira.

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Easy Rider

Cancelem-me, mas aqui vai: Havaianas não são confortáveis; os chinelos estilo Rider são

Nasci e cresci na Guerra Fria. O mundo se dividia ao meio. Havaianas do lado esquerdo, Rider do lado direito. Havaianas simbolizavam a aposta na miscigenação e na semana de 22. Rider era o parnasianismo e o projeto branqueador.

Quando Caetano gritou pra plateia censora no Festival da Canção “se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos!”, ele certamente via todo o público de Rider. O público também o via de Rider, pois usar guitarra na música popular brasileira era, para eles, como usar sapatênis numa plenária da UNE. Rider era PDS, Del Rey, SBT, Agnaldo Rayol, Afanásio Jazadji. Havaianas era Novos Baianos, TV Pirata, MTV, Pedro Cardoso, Boiçucanga, SOS Mata Atlântica.

Nasci numa família de esquerda. Fui criado sob uma doutrina hippie ortodoxa. Se na infância eu dissesse, por exemplo, que pensava em ser engenheiro ou em ter um Monza, seria provavelmente levado à força a uma cachoeira onde um amigo cabeludo dos meus pais me submeteria a duas horas de “Stairway to Heaven” numa cítara enquanto eu ofereceria pétalas de flores amarelas a Oxum.

Durante boa parte da minha vida, portanto, usar Rider foi impensável. Faz um mês, contudo, que um Muro de Berlim desmoronou dentro de mim. Eu comprei um Rider.

Na verdade, não foi exatamente um Rider, foi pior: um genérico chinês com o qual o Instagram vinha me assediando havia meses. Comprei, chegou, calcei e o conforto foi diretamente proporcional ao pânico existencial. Devo admitir, após 44 anos de erro: no quesito chinelos, a direita tem razão.

Sei que eu não deveria escrever esta crônica no atual estágio do desmantelo nacional. Tenho consciência de que não devia dar munição ao inimigo, que doravante poderá incluir as Havaianas no amplo index das proibições absurdas, junto ao cinema, ao teatro, à literatura, ao meio ambiente, aos direitos humanos, à educação e até aos absorventes femininos.

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Angelina Nikonova, diretora do filme russo Twilight Portrait, vencedor do Lisbon & Estoril Film Festival, 2011. © Reuters

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Quando até o estrogonofe é cancelado

Em nome de combater uma violação moral, incorremos num punhado de outras

A grande surpresa na crise da Ucrânia foram a rapidez e a firmeza com que a comunidade internacional respondeu à invasão russa. Até então, o presidente Vladimir Putin vinha explorando com competência as divisões entre americanos e europeus. A mudança decorre, acredito, de uma troca de “framing” (enquadramento).

Enquanto se discutia a conveniência geopolítica de a Ucrânia integrar a Otan, a questão era tratada de forma pragmática, com abertura para divergências e a possibilidade de matizes. Mas, depois que Putin decidiu recorrer às armas para iniciar uma guerra de agressão contra um país soberano, provocando a morte de civis inocentes, a invasão passou a ser vista como uma violação moral. E isso faz toda a diferença.

A grande vantagem de colocar questões sob o enquadramento moral é que fazê-lo catalisa as reações. Pessoas (e países) têm opiniões sobre tudo. Especialmente em tempos de redes sociais, é fácil fazer que as externem. Um pouco mais difícil é fazer com que tomem atitudes concretas para promover suas preferências. Mas, para fazer com que incorram em custos pessoais para impor sua visão, aí é preciso que o problema seja descrito em termos morais. Eu aceito algum ônus para punir um assassino ou um estuprador, mas não para castigar alguém que violou uma norma sem conteúdo moral, uma regra de etiqueta, por exemplo.

E a grande desvantagem de colocar questões sob o enquadramento moral é que, ao fazê-lo, abrimos as portas para a desmedida e até o fanatismo. A moral é essencialista e não trabalha bem com nuances. Se foi a Rússia que agrediu injustificadamente a Ucrânia, então torna-se legítimo punir russos, pouco importando se têm ou não agência na guerra, se apoiam Putin ou se opõem a ele. O paradoxo chega fácil: em nome de combater uma violação moral, incorremos num punhado de outras.

Quando até o estrogonofe é cancelado, fica claro que há algo de irracional no ar.

Publicado em Hélio Hélio Schwartsman - Folha de São Paulo | Deixar um comentário
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Mural da História

24|abril|2019

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Transfobia no MEC

Visão do titular da pasta sobre o mundo é obscurantista e sombria

O pastor que ocupa o Ministério da Educação, Milton Ribeiro, pouco fala, mas quando abre a boca sempre provoca estupefação pela capacidade de expressar uma visão de mundo tão obscurantista e sombria.

Seu palavrório incita a discriminação, a hostilidade e a violência contra a população LGBTQIA+. Sendo titular do MEC, tudo o que fala, faz ou deixa de fazer reverbera no tecido social, tem consequências concretas. Por isso, o ministro precisa ser responsabilizado.

A Procuradoria-Geral da República já o denunciou por homofobia porque, em entrevista, ele afirmou que jovens homossexuais são de “famílias desajustadas”. Cabe ao STF aceitar ou não a denúncia para que ele se torne réu. Vale lembrar que, em 2019, a corte decidiu equiparar condutas homofóbicas e transfóbicas ao crime de racismo.

Pois bem, dias atrás, Ribeiro saiu-se com outra. Disse que não vai permitir que escolas ensinem “coisa errada” para crianças; que “não tem esse negócio de ensinar ‘você nasceu homem, pode ser mulher'”. A fala é carregada de transfobia. O ministro da deseducação desconhece que orientação sexual e identidade de gênero são a dimensão primordial da existência. Saber quem somos é tão essencial quanto o ar que respiramos.

Mas exigir tal compreensão é pedir demais para alguém que tem fixação na violência como método pedagógico. No púlpito de uma igreja, em 2016, Ribeiro preconizou a “vara da disciplina” para corrigir o comportamento das crianças. “Há uma inclinação na vida da criança para o pecado, para a coisa errada”, delirou.

Já ministro, o sujeito disse ainda que crianças portadoras de deficiência “atrapalham” o aprendizado de outras e que “é impossível a convivência” entre elas. Ribeiro soa como um Torquemada deslocado no século 21. Também não faria feio no gabinete de Hitler, com seu discurso de filiação eugenista, propagador da segregação social que sabemos onde termina: em ódio, sofrimento e morte.

Publicado em Cristina Serra - Folha de São Paulo | Deixar um comentário
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