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Flagrantes da vida real
Janeiro|2018 – Sérgio Cabral. © Giulianno Gomes|FolhaPress
A humanidade impossível
Li, alguns dias atrás, no emaranhado de informações que me oferece o mundo eletrônico, uma notícia rápida, logo descartada pelos meus olhos cansados. O pequeno texto observava que um setor do bolsonarismo, dito “pragmático”, pretende emprestar ao seu líder, dito “mito”, traços de humanidade necessários à construção de uma imagem mais agradável aos eleitores convocados a se manifestar nas urnas – aquelas condenadas pelos terraplanistas – no segundo semestre deste ano.
Fiquei a matutar. Logo de cara, me soou estranha a combinação entre pragmatismo e bolsonarismo – algo como uma salada de tempero amargo, mistura de irracionalidade, estupidez e ódio. Que seja feita a tentativa, vá lá, mas ela se anuncia, desde logo, um fracasso retumbante. Não existe possibilidade de transformar Bolsonaro no que ele nunca foi: um ser caridoso, sensível, preocupado com a dor dos outros. Bolsonaro e humanidade são coisas que não se comunicam.
Recuperei, na memória, imagens horríveis do monstro, palavras de desprezo pelas tragédias que seu governo provocou, ajudou a provocar ou simplesmente acompanhou com frieza. Em todas essas ocasiões, que foram muitas, Bolsonaro gaguejou quando discursos preparados por suas assessorias o levaram a oferecer migalhas de solidariedade às suas vítimas. Foi evidentemente falso em seu desempenho, artista mequetrefe, constrangedor. Na maioria das vezes, os pronunciamentos vieram acompanhados de pontuações complementares, reveladoras da personalidade transtornada do chefe, que procuraram relativizar os dramas coletivos, transferir responsabilidades e vulgarizar a morte.
Bolsonaro é o absurdo convertido em poder, o retrato de um tempo sombrio. Seus crimes continuados, diários e massacrantes foram absorvidos pelo “sistema”, que o tolera. O ser repulsivo vai cumprir a integralidade do mandato que lhe foi dado. Não deveria. Voto popular não é passaporte para tudo, não é licença para a avacalhação da República. São as regras do jogo que dizem isso, e não eu. Regras postas numa constituição que agoniza, com a chancela de homens de farda, toga, terno e armas nas suas mãos sujas de sangue. O silêncio covarde das instituições é cúmplice da barbárie.
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Inédito: aqui vai um texto que não emite uma opinião
Tendo a ficar do lado dos ucranianos e a condenar com veemência os ataques russos, mas não sou especialista em nada
Os opinólatras nada anônimos comentam a guerra entre Rússia e Ucrânia com a mesma naturalidade com que costuram conjecturas definitivas sobre o esquema tático que rendeu dez vitórias seguidas ao Fluminense. Passam pela eficácia da vacina, pelo processo judicial de Lula e pelo equinócio de primavera carregando a mesma verdade incontestável.
Afinal, o que quer Vladimir? Mergulhei em artigos, reportagens, documentários. Numa guerra que acontece em tempo real nas janelas das redes sociais, garimpei memes, selfies, comentários. Fiquei intrigado com o uso que a Ucrânia está fazendo do Twitter, com os vídeos que exaltam Volodmir Zelenski no TikTok.
Enquanto as informações decantavam no meu cérebro, ainda sem conseguir encadear um raciocínio, deu-se uma epifania: num momento de lucidez, percebi que não sei opinar sobre essa guerra. Foi libertador.
Isso significa uma omissão? Não sei opinar. Tendo a ficar do lado dos ucranianos e a condenar com veemência os ataques russos. Mas é um raciocínio muito superficial para justificar uma coluna. Não sou especialista em geopolítica, economia, estratégias militares, história, criptomoedas, oligarcas russos. Muito menos em fertilizantes.
Costumo ocupar este espaço com textos de humor e fui visitado por outra questão. Afinal, é possível fazer piada com um conflito dessas proporções? De novo, não consegui formular uma opinião. Devo ter batido algum recorde.
Enquanto milhares de pessoas ao redor do mundo protestam contra a guerra, o jornal britânico Daily Mail criticou nosso Carnaval. Bolsonaristas foram às redes sociais atacar a cobertura da imprensa, sempre atenta às aglomerações promovidas pelo presidente e que agora se abstém de criticar o fuzuê momesco.
É justo que uma maioria vacinada aproveite a curva descendente da ômicron para dar vazão a essa incontida catarse coletiva tanto tempo represada? Sinceramente, não sei.
Enquanto os opinólatras nada anônimos vão desfilando seus diagnósticos e movimentando os algoritmos, os debates vão perdendo profundidade e os especialistas são silenciados em meio a toda essa algaravia. Os contextos vão desaparecendo na velocidade do TikTok. Todo mundo fala e pouca gente ouve.
Mas o meme gira e o algoritmo não para. Em breve, o próximo assunto vai surgir para saciar essa sanha opinadora. Não haverá abstinência.
A cidade e seu improvável livreiro
Quando cheguei a Curitiba, em 1964, me senti em Nova York. Que cidade, eu me perguntava, teria tantas livrarias? Eu vinha de uma cidade sem livrarias. Nesse circuito, algum tempo depois, eu procurava um livro de Arnold Hauser, História Social da Arte. Como não havia tradução brasileira, fui informado de que poderia encontrar uma edição em espanhol na livraria do Vignoles. Era o nome do livreiro. Um sujeito esquisito, me advertiram.
A livraria ficava, se não me engano, no primeiro andar da esquina da Rua do Rosário com a Praça Tiradentes. Entrava-se por uma escada estreita, de madeira. Subi passo a passo, os degraus rangendo a lembrar um filme de terror. Ninguém. Prateleiras, livros, um balcão. Andei de um lado para outro, pigarreei, arrastei o pé no chão. Já estava desistindo, quando emergiu, por detrás do balcão, um sujeito que me perguntou:
– O que você quer?
Assim, sem rodeios, um golpe de direita no queixo. Era um homem careca, de cara monolítica e sobrancelhas tensas. Ele balançou o corpo – parecia não se conter dentro de si – uma das mãos na cintura e outra sobre o balcão. Repetiu a pergunta:
– O que você quer?
Naquela época eu era um tímido profissional, capaz de horas de mutismo e de silêncios abissais e intransponíveis. Mal consegui dizer:
– Procuro um livro…
Hesitei. Súbito, o nome do livro sumira de minha cabeça. O careca atacou:
– É claro que procura um livro. Mas qual é o livro?
– História Social da Arte, do Arnold Hauser – lembrei, de soco.
Afastando-se ligeiramente, ele ergueu o tronco que inclinara para falar comigo. Retirou a mão que estava sobre o balcão, mantendo a outra na cintura e continuou, no estilo boxeador:
– E por que precisa deste livro?
Eis uma pergunta que eu não me fizera. Ou seja: queria ler, apenas isso. Já encontrara várias referências a ele em artigos, em livros, em jornais.
– Quero ler, murmurei.
– É claro, para que iria querer um livro, não é mesmo?
Ficamos os dois, olhos nos olhos, preparando o bote. Boxe puro. Temi que eu pudesse passar da timidez mórbida à agressividade mais desastrada, o que me acontecia na época. Por sorte, ele relaxou, ergueu os ombros, fazendo com que seu pescoço sumisse no meio deles, e estaqueou os braços sobre o balcão:
– Olhe, meu rapaz. Eu tenho o livro. Está ali, na prateleira ao lado da janela. Mas… – esperei pelo pior – …seu professor, ou seja lá quem lhe indicou este livro, não explicou uma coisa, provavelmente porque também não sabe. E me disse que eu perderia tempo lendo aquele livro. Está na moda, comentou com alguma repugnância, todo mundo anda lendo, todo mundo indica, mesmo sem ter a menor noção do que se trata. Moda, compreende? Moda é moda. Acontece que é um livro teoricamente fraco, com uma visão tosca das relações entre sociedade e arte. O autor, esse Hauser, leu Marx e não entendeu nada. E arrematou:
– Bom, o livro está ali. Se quiser comprar… Não aconselho.
Não comprei. Sumi escada abaixo. Só fui ler o livro meses depois, comprado no sebo da Voluntários. Em todos os casos, era outra Curitiba. Em qual das livrarias de hoje eu poderia encontrar um espécime raro daqueles: um livreiro que lia os livros que vendia, que tinha uma opinião a respeito deles – qualquer que fosse – e que, por discordância teórica e ideológica, preferisse não vendê-los a um estudante incauto?
Anos depois, me tornei amigo do Vignoles, quando ele já deixara de ser livreiro. Seguimos no estilo boxeador, como sempre, com diretos e cruzados de lado a lado. Uma grande figura. Um livreiro que sabia falar sobre os livros que vendia. Era outra Curitiba. Talvez outro mundo.
Publicado em Roberto Gomes
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Causa própria
Bolsonaro manda o Itamaraty votar contra denúncia a Vladimir Putin no Tribunal de Haia. A corte julga crimes contra a Humanidade praticados por chefes de Estado e comandantes militares, como nos massacres da África, dos Balcãs e da Ásia. Além da “relação excepcional” com Putin, há o interesse pessoal do presidente do Brasil no voto em causa própria. Pode abrir precedente; quem tem genocídio tem medo.
Publicado em Rogério Distéfano - O Insulto Diário
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Emprestou ou deu?
De novo, tiozinho? E com essa cara de pau? Como que você não disse que emprestava solidariedade ao russo? Disse, sim. Desde que inventaram o Jornalismo com Câmera e Microfone não dá mais pra dizer que não disse o que disse. Antigamente era fácil. A autoridade dizia uma asneira, essa asneira era publicada e o repórter perdia o emprego por estar a espalhar notícia falsa. Está lá pra quem quiser ver e ouvir. Tiozinho falando que emprestava solidariedade e tiozinho falando que não tinha emprestado. Se não emprestou, então o que foi? Deu?
Publicado em Nelson Padrella - Blog do Zé Beto
Com a tag Bozonaristas!
Comentários desativados em Emprestou ou deu?
Portfólio
Trabalhávamos na Múltipla Propaganda, anos 80. Leminski falava o tempo todo que estava aprendendo japonês, para melhor entender a poesia japonesa. Sem nada para fazer, xeroquei a cara do Polaco e coloquei sobre uma gueixa. Tirei uma quantidade enorme de xerox e espalhei pela agência. E a minha brincadeira “kamiquase” saiu no primeiro livro de Leminski, virou nome de site e, tempos depois, ele, o Bandido que Sabia Latim, contou-me que Haroldo de Campos havia considerado a montagem “uma descoberta genial”.
Assim passavam os dias.
Publicado em Sem categoria
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‘Venha, querida!’
Meu amigo Luiz Renato Ribas Silva, companheiro de tantas jornadas – TV Programas, Guiatur, Programas, Directa e, mais recentemente, o livro “A Pequena Notável”, que narra a história de TV Programas e da televisão do Paraná –, está indignado comigo:
“Célio, você prometeu a você mesmo e continua não cumprindo, insistindo no mesmo e insuportável tema político bolsonarista, perdendo seu precioso tempo e comprometendo desconfortavelmente seu fiel leitor. Revolta, reação de nojo, e por ai afora, pouco adiantam. Nada melhor que o desprezo, explorando outros assuntos tão ricos em nostalgia, reconhecimento a méritos de pessoas do nosso e outros tempos, entre outros, mesmo políticos, que tão bem você sabe descrever, dando a essa sua memória cavalar a expectativa de uma leitura, no mínimo mais atraente e, até, divertida. Um abraço, Ribas.”
Concordo com ele. Ele tem razão. Prometi não mais escrever sobre aquele cujo nome não se deve mencionar. Fiz o possível. O leitor é prova disso. Mas, meu caro Ribas, às vezes fica impossível cumprir a promessa. O infeliz está aí no poder, fazendo besteira sobre besteira, prejudicando o Brasil e os brasileiros. Como ficar calado?! Pareceria omissão irresponsável, seja lá o que isso velha significar, como diria o nosso Nelson Padrella. O homem é candidato à reeleição. Tem muito pascácio (o significado disso pode ser encontrado nos dicionários) que ainda acredita nele. O risco existe. É necessário desnudar o elemento à exaustão. Prefiro ver na presidência da República uma das emas que pastam em torno do Alvorada. A Nação não suportará um novo mandato do desditoso (também está no dicionário). Será o Apocalipse, apregoado por católicos e evangélicos.
De todo modo, bom amigo Ribas, vou atendeu ao seu pedido. Pelo menos esta semana. E retornar àquele instante fugaz de graça.
Conhece aquela do paulista que, cansado do mau tempo em São Paulo, resolveu tirar uma folga no Rio com a esposa, só que antecipou-se uns dias à esposa? A estória me foi enviada, para variar, por outro amigo querido, o Márcio Augusto Nóbrega Pereira. É a seguinte:
Quando chegou ao seu quarto no hotel, no Rio, o marido viu que havia ali um computador com acesso à internet. Decidiu, então, enviar um e-mail à mulher. No entanto, ao digitar o endereço, errou uma letra, e a mensagem foi enviada para outra pessoa, uma viúva maranhense, que acabara de chegar do enterro do seu marido. Ao conferir os seus e-mails, ela desmaiou instantaneamente.
O filho, ao entrar em casa, encontrou a mãe desmaiada, ao lado do computador, em cuja tela lia-se o seguinte:
“Querida esposa: Cheguei bem e, embora esteja aqui a poucas horas, estou gostando muito. Você provavelmente se surpreenda em receber notícias minhas por e-mail, mas agora tem computador aqui e pode-se enviar mensagens às pessoas queridas. Já me certifiquei de que está tudo preparado para quando você chegar, na sexta-feira. Estou com muitas saudades suas e espero que a sua viagem seja tão tranquila como está sendo a minha. “Beijos do seu eterno e amoroso marido.
“P.S. – Não traga muita roupa porque aqui faz um calor infernal”.
E então, amigo Ribas, deu, ao menos, para sorrir?
Da eutanásia
Mais cedo ou mais tarde todo articulista decente tem que falar da eutanásia, razão pela qual eu custei tanto a me decidir. De saída é uma palavra tão bonita que, se a pronunciamos contra o céu azul do colocar-do-sol (antigo pôr-do-sol) de um dia de domingo, qualquer pessoa, por menos poética que tenha a alma, percebe imediatamente que somos muito cultos e lidos. De qualquer forma não é necessário esperar o domingo para usar a eutanásia, já que nos dias comuns essa palavra também pode ser empregada, embora só em legítima defesa.
Porém, que é a eutanásia? A eutanásia, inventada no ano de 1200 por Sir Lawrence Olivier Lancelot, tornou-se imediatamente muito popular entre médicos que tinham pressa em receber as contas das viúvas. Aplicada aos doentes, ela dá excelentes resultados, curandoos completamente dessas tola mania de chamar médicos quando está doente. Médicos só devem ser chamados quando se está vendendo saúde. Por exemplo, aos 18 anos, fazendo surfe no Arpoador.
Outrossim (que eliminou da língua o outronão), é muito fácil saber se você contraiu eutanásia: basta olhar pro canto e ver se a junta médica está falando em voz baixa. Se estiver, é porque você acabou de ser convocado para fim de herói russo no período comunista ou pra doador de órgãos na China atual. Isso, no Brasil do século XIX, ainda não se chamava eutanásia, se chamava “Voluntários da Pátria”.
Na Idade Média (aproximadamente 40 anos) essa ciência chegou a ser muito praticada, principalmente em Caxias, no Rio, tendo até mesmo o Sr. Tenório Cavalcanti publicado um livro sobre as melhores maneiras de se empregar a referida Euterpe com metralhadora Lurdinha. Floresceu muito, também, entre os Médicis de Florença e só não floresceu mais porque Florença temeu a concorrência e juizes severos praticaram a eutanásia na eutanásia, tendo ela embarcado para a França, onde apareceu num filme de André Cayatte e posso garantir que estava mais bonita do que nunca.
Mas o local onde crescem as maiores eutanásias que já tive oportunidade de saborear, é no 2o. pavilhão para tratamento psicológico, no Carandiru.
Olha, explico melhor –no tempo em que o cavalo de Tróia ainda era potro, já a eutanásia tinha dado duas voltas ao mundo, usada muitas vezes por pessoas que não tinham a mínima experiência e tentavam apagar alguém praticando a eutanásia e acabavam liquidando sem que a eutanásia sequer desse as caras. (Aqui conviria falar de Hiroshima e Nagasaki, mas eu agora estou sem vontade de me meter na guerra fria, pois acho que essa era até bem quente. Prefiro chuveiro. A propósito, alguém ai tem cinco notas de dez, dessas elásticas estou precisando lavar dinheiro).
Isso é a eutanásia, em suma. Quem souber mais e melhor que me diga, sendo que a bibliografia a respeito é muito rica, estando mesmo Trotsky preparando um grosso volume sobre o assunto quando Stalin praticou a eutanásia nele. E mais não digo porque, aqui pra nós, estou com eutanásia de assunto.
Publicado em O irritante guru do Méier
Com a tag folha de são paulo, millôr fernandes
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Vale a pena ver de novo – The Big Tree
Na Maison Jacobsen, Grande Árvore do Humor. Da esquerda para a direita: Cilda Jacobsen, Raquel, Pryscila Vieira, Vera Solda, Tiago Recchia, Sampaio (óculos escuros e boné) o cartunista que vos digita, Juliana Radaelli, Marco Jacobsen (com Théo no colo), Ademir Paixão (de chapéu) e Eduardo, lá em cima. © Bibiana Schneider
Publicado em tempo
Com a tag ademir paixão, juliana radaelli, marco jacobsen, O Cartunista que vos digita, pryscila vieira, sampaio, vera solda
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Tempo
Teresina. Salão Internacional de Humor do Piauí, 2007, 25 anos.
O reles mundo global contra o poder individual
A carne dos dianteiros do boi é de segunda. Os italianos criaram um processo eletromagnético que realinha as fibras duras e emaranhadas dessas carnes e elas ficam semelhantes ao filé mignon. Isso já aconteceu faz tempo. Mas pode passar agora na televisão e tem gente que vai se espantar, achando um crime. São essas mesmas pessoas que, de tão absorvidas pela vida cotidiana, não percebem o quanto estão sendo alinhadas para consumo mais fácil.
Os artistas de antigamente tinham o poder de criar estranhamentos e sacudir os pacatos cidadãos quando eles estavam alinhados demais. Este sacudão mostrava que a sobrevivência estava ameaçada pela inércia. Uma grande dose de ar puro (arte) era injetada de tempos em tempos nos pulmões das pessoas comuns. Os artistas eram incomuns. Hoje, somos todos artistas.
Logo, somos todos comuns. E todos enfileirados, alinhados. Nesta toada vem a contradição: criou-se o mundo da individualidade (o artista para si, o homem comum para si) mas, ao mesmo tempo, o mundo tecnocomputadorizado em escala mundial urra logo ali na porta e obriga a participar. Um individualista ferrenho usa cartão de crédito aceito em todo mundo, em todas as lojas. A propaganda individualiza o cidadão para que ele seja global. O cartão que ‘só você tem’ é o cartão de milhares de pessoas. Perplexidade a toda prova! O sonho de um mundo não linear (o linear era o da escrita pura) transformou-se num pesadelo. Porém, estranhamente, é um pesadelo do qual ninguém quer acordar. É o primeiro pesadelo quentinho, com música ambiente e cheirinho de sabão em pó com aloé vera.
Antes da chegada da era eletroeletrônica, o ser humano tinha um roteiro de vida: uma geração levava à outra. Hoje, as mudanças culturais são muito rápidas, minimizando as mudanças genéticas. Não temos mais começo, meio e finalidade. Apenas fazemos conexões e vamos indo. Se não cair, estamos ‘conectados com o mundo’. Mas, não há no break para garantir a estabilidade emociona
*Rui Werneck de Capistrano é in-dividi-duo