Ailton Krenak: próxima missão do capitalismo é se livrar de metade da população do planeta

Antes da pandemia, Ailton Krenak mantinha uma agenda intensa. Escritor finalista do Prêmio Jabuti com seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, também lançou A Vida Não É Útil e O Amanhã Não Está à Venda, todos pela Companhia das Letras. Por conta da produção, viajava com frequência pelo Brasil. Desde a chegada do vírus, Krenak cumpre, porém, a quarentena na terra indígena de sua etnia, a 200 quilômetros de Belo Horizonte. “Mantemos as nossas famílias próximas.

Podem encontrar-se no quintal, podem comer juntos, não precisam usar máscara. Temos um regime orientado por um protocolo comunitário”, conta. No oásis à margem esquerda do Rio Doce, em meio ao caos sanitário, ele segue alerta para os dramas do mundo, como demonstra na entrevista a seguir.

CartaCapital: Você e os Krenak passam juntos a quarentena. Como tem sido a experiência?

Ailton Krenak: A pandemia não é um evento local. Posso estar sem contágios na minha aldeia, mas há vários casos no entorno. Nos grandes centros urbanos há alguma vigilância. Mas nas bordas do Brasil, na periferia, nas beiradas, no Porto de Manaus, no Porto de Belém, ninguém controla aquele fluxo. Lá na reserva, observamos preocupados. Não adianta nos protegermos se o lado de fora está bagunçado. O recrudescimento da Covid-19 é um risco grave para nossas vidas. Temos consciência, mas tememos que os vizinhos não tenham. Somos uma sociedade do contágio. Por mais que um de nós tome cuidado, sozinho não consegue evitá-lo.

Mantemos nossas famílias próximas, as irmãs, os cunhados, podem encontrar-se no quintal, podem comer juntos, não precisam usar máscara. Temos um regime orientado por um protocolo comunitário, tomamos decisões juntos. Lá não há decisões individuais. Se alguém põe em risco o coletivo, pode sofrer algum tipo de sanção, inclusive posto para fora.

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Mal de Mãe

Mila escreve para escoar e ecoar sua dor e dar um contorno ao seu corpo

Lançada no Brasil em 2006, a obra “As Duas Mães de Mila”, de Clara Vidal, está fora de catálogo (achei meu exemplar na Estante Virtual). Ainda assim, resolvi escrever esta resenha, pois li o livro recentemente, de um fôlego só, e estou há dias obliterada por suas breves e densas páginas.

Mila tem duas mães. A que ela chama de “rosa” é terna, amorosa e equilibrada (e, quando a filha está doente, a trata tão bem que a garotinha até torce para ficar enferma); já a “cinza” é cruel, indiferente e profundamente destemperada. Com o passar dos anos, a relação abusiva piora: a progenitora tenebrosa e tirânica humilha a própria cria sempre que pode, lhe dando presentes sujos, quebrados, com pedaços faltando e exigindo que a menina se sinta grata.

Mila precisa se agarrar a alguém, pedir socorro, contar o que passa em casa, então tenta se abrir com a melhor amiga, o pai, a avó. Mas assim que começa o desabafo, percebe os olhares julgadores: todos acreditam que está ficando louca. E assim, dos 9 aos 15 anos, acompanhamos o adoecimento da personagem através de um relato extremamente triste e corajoso. A garota desenvolve transtorno alimentar, transtorno obsessivo compulsivo e, “estranha que é”, passa a ser vista como problemática, sociofóbica e causadora de todo o sofrimento de sua família.

Quando pensa que nasceu do corpo daquela mulher, que passou pela vagina daquela pessoa que a trata dessa forma indigna, Mila não consegue controlar a ânsia de vômito. E, quanto mais magra e apática fica, mais seus pais ignoram os únicos alimentos dos quais a filha precisa: acolhimento e afeto.

Crente que conseguiu finalmente deitar no colo de uma mãe bondosa, Mila sente os espinhos. Crente que agora vai poder odiar a mãe terrível, é agraciada pelos carinhos da mulher dedicada e querida. Como saber o que sentir na presença de uma mãe dupla? Para dar conta de um mundo de ponta-cabeça, a menina passa a contar e organizar tudo compulsivamente.

Já adolescente, Mila demora a menstruar pela primeira vez. Lá no fundo, tem medo de se tornar mulher e ser ainda mais massacrada. Quando acontece, esconde de todos o sangue que lhe escorre pelas pernas. E, ao ser descoberta, corre oprimida para o banho sob os xingamentos de porca e imunda.

Para não dizer que ela está completamente só neste mundo (quer solidão e desgaste maior do que ser acusada de maluca pela própria mãe maluca?), Mila tem ao seu lado a narradora do livro —muito provavelmente ela mesma, já escritora e em um futuro possível depois de muita terapia.

Ela ainda não sabe, mas sua principal aliada será a persistência em não desistir da vida. Mila escreve para escoar e ecoar sua dor e dar um contorno ao seu corpo. Sim, a escuta analítica (e sua coragem para o quase indizível) lhe dá a subjetividade que a livra da psicopatia e o amparo materno tão necessário para crescer. E esse é o único alívio que você vai sentir ao ler essas páginas.

Nas palavras do psicanalista Paulo Schiller, que traduziu a obra: “Mila não é única. A história de Mila não é incomum como desejaríamos que fosse”.

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Mural da História

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12 de maio|2010

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Bolsonaristas deveriam revoltar-se

Se eu fosse um deles (deus me livre), já estaria na rua quebrando tudo

Se eu (Deus me valha e guarde!) fosse bolsonarista, já estaria na rua quebrando tudo. É que há um limite para o número de vezes que uma pessoa pode deixar-se enganar sem comprometer a autoimagem. E, no caso dos admiradores do mito, esse limiar já ficou para trás em qualquer análise objetiva.

A cereja do bolo é o esforço bilionário do presidente de distribuir verbas e cargos entre congressistas para tentar assegurar aliados no comando da Câmara e do Senado. O próprio Bolsonaro, durante a campanha, dizia que o presidente que troca cargos por apoio no Parlamento merece o impeachment (declaração de 27 de outubro de 2018). E quem é um bolsonarista para discordar de Bolsonaro?

Não foi só na antipolítica que o ex-militar cuspiu em seu eleitorado. Ele também o fez em relação à pauta anticorrupção (foi Bolsonaro, não Temer, quem enterrou a Lava Jato) e à agenda econômica liberal (cadê o R$ 1 trilhão em privatizações?) para ficarmos só nos grandes temas.

Figurativamente, alguns grupos de bolsonaristas já começaram a quebrar tudo. É o caso da molecada do MBL, que passou recentemente a defender o impeachment.

Como não sou bolsonarista, não me sinto traído. Não posso nem dizer que tenha ficado surpreso com a quebra de promessas. Quem acreditou que o rei dos esquemas de baixo clero da Câmara (Wal do açaí, apartamento funcional “para comer gente”) iria atuar contra a corrupção o fez por conta e risco.

Devo, porém, confessar que estou dividido em relação à minha torcida. Em nome da decência, adoraria ver Bolsonaro impedido —e penso que iniciar o processo é um imperativo moral. Mas, para que o afastamento se torne uma hipótese realista, a economia e a pandemia precisariam piorar. A conta consequencialista, que faltam elementos para resolver, é se o Brasil perde mais com um agravamento agudo das condições econômicas e sanitárias ou com a permanência de Bolsonaro até 2022.

Publicado em Hélio Hélio Schwartsman - Folha de São Paulo | Deixar um comentário
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Impeachment de Bolsonaro: a vingança e a vingança de Maia

Depois de levar uma punhalada de ACM Neto, o seu Brutus, e demais cúmplices do DEM, Rodrigo Maia, ainda presidente da Câmara, cogita aceitar um dos pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro — que aliciou com mais de 3 bilhões de reais em emendas e cargos no governo deputados de quase todos os partidos, inclusive o DEM, que deve abocanhar o Ministério da Educação, para que deixassem o barco de Baleia Rossi (sem trocadilhos), do MDB, e subissem no de Arthur Lira, do Progressistas, candidato do Planalto e do Centrão à presidência da Casa. Como relatado pela imprensa, em reunião ontem à noite, Maia afirmou ter em mãos um parecer jurídico favorável à abertura do processo de impeachment.

A política brasileira é aborrecidamente vergonhosa.  Assim como vem ocorrendo desde sempre, o que move esse pessoal é a vingança, visto que a única convicção que exibem é a de que o dinheiro do pagador de impostos lhes pertence. Até a semana passada, Maia dizia que o impeachment do sociopata causaria instabilidade indesejável a um país que precisa enfrentar uma pandemia mortífera. Fingia ignorar que a saída de Bolsonaro da presidência da República é parte de um eficaz enfrentamento nacional da crise sanitária causa pela Covid-19. Mas mudou de ideia ao ter o seu tapetinho puxado pelo Planato et caterva. Agora tem até parecer favorável, veja só. Maia é mais do mesmo.

O presidente da Câmara decide monocraticamente pela abertura do processo de impeachment do presidente da República, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal datado de 2015. Trata-se de decisão irrecorrível, sem possibilidade de recurso em plenário. A menos que o STF, uma vez provocado, mude de opinião (o que sempre é possível onde impera a jurisprudência de ocasião), o rito do impeachment seguiria numa comissão e o resto nem Deus sabe.

Maia poderia ter decidido pela abertura de um processo de impeachment no início do ano passado, quando ainda estava forte e Bolsonaro apenas esboçava a compra do Centrão. Teria poupado o país de milhares de mortos pelo vírus. Não o fez. A sua conveniência política prevaleceu. Contentou-se com notas de repúdio às barbaridades cometidas pelo presidente da República. No apagar das luzes como mandachuva na Câmara, quer vingar-se e sair como herói. Assim como Eduardo Cunha fez com Dilma Rousseff. Assim como vem ocorrendo desde sempre, como já dito.

Se Maia abrir mesmo o processo de impeachment, o Centrão vai regozijar-se: poderá cobrar fatura ainda mais alta de Bolsonaro, para mantê-lo no Planalto. Se a popularidade do presidente da República despencar, a rejeição a ele aumentar e manifestações populares de porte ocorrerem, o Centrão mudará de lado sem vergonha (e do que ele tem vergonha?), depois de lambuzar-se com o que lhe foi oferecido por Bolsonaro. O jogo do Centrão é de ganha-ganha; o do Brasil é sempre de perde-ganha-perde. O impeachment de Bolsonaro em 2020 teria saído mais barato em vidas e dinheiro. Por causa de Maia, sairá mais caro em todos os aspectos, se vier a ocorrer. É o que temos no cardápio: vingança, não convicções.

Em 2016, escrevi um artigo sobre o papel da vingança na política brasileira. Escrevi-o depois que Eduardo Cunha se viu cassado e caiu na rede da Lava Jato. A história no Brasil não se repete como farsa porque não temos originalidade nenhuma, as variações de moldura enfatizando o tema único da pintura. Repito-me também, reproduzindo o artigo de quase cinco anos atrás:

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Beija-flor no hibisco

Esses dias, a Dora Urban postou em seu perfil no Facebook as delícias matinais do sítio em que descansava no final de semana. Quase tive a sensação de ouvir o timbre suave e doce de sua voz, se expressando por meio daqueles registros. Tudo canta em volta dela. Inspirada pelas imagens que vi, corri no quintal, arrastando um pouco de culpa por ter esquecido de  aproveitar as dádivas que a natureza nos oferece, pedindo em troca apenas e tão somente que a respeitemos e cuidemos dela.

Consegui surrupiar dos passarinhos as últimas mangas da estação que alcancei. Eles tinham a facilidade de chegar até as mais altas e esticar tal desfrute por mais alguns dias.  Depois dessas, somente poderei voltar a vê-las na próxima temporada. As romãs também já se despediram, assim como as jabuticabas, enquanto ensaio um olhar esperançoso para as flores e a expectativa delas que acredito perceber no pé daquela ameixinha amarela (que nunca lembro o nome), da pitangueira e da amoreira. Lembro, sim, de, nessas idas e vindas, só ter pego uma vez um caju e, quando é época, de ter colhido laranjas e as bergamotas para o café da manhã.

A bem da verdade, não lembro de alguma vez ter sentido a falta de limões ou de sequer precisar comprá-los no supermercado, nem na quitanda. Dos temperos que plantei, ainda restam resistentemente o manjericão, o alecrim, a cebolinha e o orégano. E se alguma comida industrializada ou as tentações açucaradas de formiguinha não forem bem digeridas, recorro ao Boldo do Chile que dá o ar da graça o ano inteirinho em volta da grade, já quase no muro do vizinho.

Para uma urbanoide ferrenha, essa fartura tem um valor incalculável e arranca sorrisos de contentamento. Também nos reconecta à beleza do que é simples e traz uma sensação de paz, capaz de fazer qualquer pessoa se distrair um pouco dos seus dramas palpáveis e esquecer-se por breves momentos da realidade lá fora. Tem uma pitada de nostalgia e de perseverança nessa receita.

Obrigada, Dorinha, por compartilhar suas alegrias matinais carregadas de lirismo. Pisei na terra, respirei fundo e me abasteci da energia necessária para seguir adiante. Volto mais forte para continuar me indignando e sentindo saudades do que evoca as preciosidades da vida e das coisas que, inspirada pela resistente natureza, nos nutrem de esperanças e da boa fé.

E o “Beija-flor no hibisco”, de onde saiu esse título? Então, enquanto voltava, bati o olho na cena. Ela me reteve ali mais um pouco, prendendo a respiração e com receio de atrapalhar a performance e o ritmo daquele sinuoso balé. Coloquei-a logo em destaque, bem no alto, para nunquinha esquecer de falar das flores. Ainda mais quando elas imprimem tamanho frescor à paisagem.

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Os fura-filas da vacinação

Em todo Brasil há denúncias de fura-filas da vacinação.

Em Manaus duas recém formadas em medicina, filhas de rico empresário, vacinaram-se no primeiro dia da campanha, não ocupam cargos na linha de frente, mas de gerentes de projetos. Uma delas foi nomeada um dia antes de ser imunizada.

O Ministério Público do Amazonas pediu a prisão preventiva do prefeito de Manaus, David Almeida (Avante), e da secretária municipal de Saúde, Shadia Fraxe, por suposta fraude no processo de vacinação.

Na cidade de Pires do Rio (GO), o agora ex-secretário de Saúde Assis Silva Filho incluiu a si própria e a sua mulher na lista de vacinação antes dos grupos prioritários. Foi denunciado pelo Ministério Público do Estado, fez acordo para pagar 50.000 reais de multa e deixou o cargo.

A cidade de Itabi em Sergipe, tem cinco mil habitantes, recebeu 31 doses e o prefeito de 46 anos foi imunizado, no primeiro dia.

Em todo Brasil há denúncias de diversos prefeitos que se anteciparam aos grupos prioritários.

Quais controles podem ser realizados? Há listas, com o nome completo, CPF, comprovação de que o vacinado ocupa o grupo prioritário? São públicas? Quem fiscaliza?

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça oficiaram à Fiocruz para passar à frente dos grupos prioritários.

No Brasil há uma articulação de grandes empresas do setor privado para furar a fila da imunização e os grupos prioritários, comprando vacinas por fora e à margem do Sistema Único de Saúde. Quem pode mais, chora menos?

Os fura-filas e as autoridades sanitárias podem ser responsabilizados criminalmente, por improbidade administrativa e sujeitos à reparação por dano moral coletivo.

O ato de furar a fila, de passar os outros para trás, de “ser mais esperto que os outros”, faz parte da história da colonização de rapina na América do Sul, e no Brasil a tardia e incompleta abolição da escravidão, mas não é exclusiva dos trópicos.

Em Portugal, dezenove pessoas, entre os proprietários e os funcionários de pastelaria, ao lado do INEM (Instituto Nacional de Emergência Médica), do Porto foram consideradas prioritários e vacinados contra a Covid-19. O episódio rendeu a demissão do responsável pela delegação. A justificativa foi de que as vacinas seriam inutilizadas.

As pastelarias em Portugal vendem doces e equivalem às confeitarias no Brasil.

Como explicar tudo isto?

Essencialmente, a hierarquia brasileira é fundada na intimidade social, no poder financeiro e no poder institucional.

Os exemplos são inúmeros: as vagas de estacionamento privativo, os passaportes especiais, a distribuição de títulos honoríficos, a existência de cônsules honorários, as filas especiais em aeroportos em razão do poder econômico ou do cargo, as filas especiais em atendimentos hospitalares para casos particulares. A própria escolha política de personagens em tribunais superiores segue esta lógica.

Num espectro mais amplo: a distribuição das concessões de rádios e das televisões, a existência de camarotes em razão de posições no Estado ou de laços de amizade em estabelecimentos públicos, a mais recente, a régia distribuição das verbas orçamentárias devido as eleições da presidência da Câmara dos Deputados e do Senado para livrar Bolsonaro do inevitável impeachment. Continue lendo

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Soy loco por Teresina

DSC_1633© Patricia Basquiat

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À espera do curió

O canto de um passarinho pode ser o último alento antes da dissolução final

Em novembro último, escrevi duas colunas (5/11 e 9/11) a respeito de um curió cujo assobio me entrava pela janela toda manhã e me ajudava a saltar da cama e encarar o Brasil daquele dia —para se ter uma ideia da beleza do seu canto. O bichinho, segundo meu atento porteiro João, pertencia a um colega dele, porteiro do prédio em frente, e não era um curió qualquer. Tinha registro no Ibama e era um dos curiós mais populares do Leblon —transeuntes paravam sob sua gaiola na árvore para ouvi-lo cantar.

À distância, por causa da quarentena, juntei-me aos seus admiradores. A única restrição que lhe fazia era a relativa limitação de seu repertório, composto de um único tema —fiu-firiu fiu-firiu, fiu-fiu, fiu-fiu, fiu-fiu, tendo como coda mais um fiu breve e individual. Um ornitólogo me escreveu para dizer que não era uma limitação, mas o resultado de um longo trabalho do curió para chegar à perfeição daquela frase melódica. E que, provavelmente, o último fiu lhe tomara meses de ensaio.

Tudo isso é para dizer que, desde dezembro, deixei de ouvir o concerto matinal do curió. Hipóteses terríveis me assaltaram. Famoso como era, ele teria sido sequestrado e seu dono não podia pagar o resgate. Ou seu passe fora comprado por um milionário chinês que o levara embora. Ou, revoltado com os rumos do país, ele teria entrado em depressão e se recusava a cantar.

Dei alguns dias, voltei a João e lhe pedi notícias. Ele me tranquilizou: o dono do curió fora ao Norte ver a família e o deixara aos cuidados de um colega em Jacarepaguá. Logo estarão de volta ao Leblon.

Vou aguardar. O Brasil não está para que seus cidadãos pulem da cama e encarem o dia. O país, entregue a canalhas e omissos, à paisana ou fardados, está se dissolvendo sanitariamente, moralmente, institucionalmente. O canto de um passarinho pode ser o último alento antes da dissolução final.

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Tetas censuradas

Em tempos de notícias falsas, teorias da conspiração, discursos de ódio, tudo embalado com a refinada moldura das redes sociais, o que incomoda mesmo são as tetas

Experimente digitar a hashtag tetas, no Instagram. Você vai se deparar com o seguinte aviso: “Essa hashtag está oculta. As publicações com #tetas foram limitadas porque a comunidade denunciou conteúdo que pode não cumprir as Diretrizes da Comunidade do Instagram”.

Em outubro, a plataforma anunciou que liberaria a exposição de seios femininos depois de protestos contra a censura de uma foto. A discussão é tão antiga quanto a hipocrisia. Estão liberados os peitos em três condições: se a pessoa estiver se abraçando, acariciando ou segurando. Isso mesmo. Se estiverem bem comportados, quietinhos, como numa pintura renascentista. E a hashtag continua banida.

Em tempos de notícias falsas, teorias da conspiração, discursos de ódio, cancelamentos, destruição de reputação, tudo embalado com a refinada moldura das redes sociais, o que incomoda mesmo são as tetas. Por isso tantas regras e a preocupação de que as pessoas de bem não se deparem com peitos atrevidos, metidos, salientes, provocantes, arrogantes, permissivos. Um perigo para a família brasileira.

Teta não pode. Mas pode disseminação de notícia falsa. Curas milagrosas para Covid-19, dúvidas sobre a existência da pandemia, a trama comunista para dominar o mundo, chip implantado por meio da vacina, mudanças no DNA, kit gay.

Teta não pode, mas assédio direcionado tá liberado. O presidente da República promove perseguição contra opositores, críticos, jornalistas, que são alvejados por suas tropas de linchadores virtuais. Tudo é noticiado amplamente, mas ele segue firme e forte usando seu espaço para democratizar a barbárie com a anuência das redes.

Teta não pode, mas baixaria revanchista tudo bem. OK para golden shower, panelaço com piroca, deep fake de jornalista em corpo de atriz pornô, de cara de deputada no corpanzil de uma porca. Teta não pode, mas apedrejamento de mulher que assume usar vibrador não tem problema. Insinuar que é mal amada, mal comida, também tá valendo.

Teta não pode, mas chamar mulher de vadia, vagabunda, piranha, puta, dizer que vai estuprar, matar, pegar na esquina, pelo jeito não fere os códigos da “comunidade”.

Teta não pode, mas intimidação não pega nada. Há umas duas semanas, recebi ameaças de que estou “mais exposta do que imagino”, que sabem todos os “meus podres”, “até lá na casa, lembra?”, que na hora certa vão “expor safado mentiroso”.

A página foi denunciada por centenas de seguidores. Acionei uma pessoa do Instagram. A resposta depois de uns dias: apesar de ameaçadores e nada agradáveis, as mensagens não são contra a política e por isso não pode gerar exclusão ou bloqueio.

Mas o problema das redes sociais são as tetas.

Publicado em Mariliz Pereira Jorge - Folha de São Paulo | Deixar um comentário
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Presidente da CPI das Fake News recebeu R$ 40 milhões de verba extra do governo

Angelo Coronel, senador do PSD da Bahia e presidente da CPI que investiga as fake news bolsonaristas, recebeu sinal verde do Planalto para direcionar R$ 40 milhões de recursos extras do orçamento a obras em seu reduto eleitoral, informam Breno Pires e Patrik Camporez no Estadão.

A verba consta da planilha informal do governo, obtida pelo jornal paulistano, que registra um repasse de R$ 3 bilhões a 285 parlamentares às vésperas das eleições da nova cúpula do Legislativo.

No Congresso, Coronel se define como independente, mas tanto ele quanto seu partido, o PSD, estão fechados com os dois candidatos defendidos por Jair Bolsonaro: Arthur Lira na Câmara e Rodrigo Pacheco no Senado.

O PSD, chefiado por Gilberto Kassab, recebeu a maior fatia do bolo disponibilizado pelo governo às vésperas das eleições no Congresso: R$ 600 milhões, ou 20% dos R$ 3 bilhões.

E, na lista dos parlamentares do partido que puderam indicar recursos, o presidente da CPI das Fake News aparece entre os quatro mais contemplados.

Ouvido pelo Estadão, o senador baiano alegou que não há nnehuma relação entre o direcionamento de recursos e as eleições do Legislativo.

“É minha obrigação, como parlamentar, correr atrás de obras para o meu estado. É normal, mas em nenhum momento foi em troca de votação.”

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O nariz é nosso!

clube-do-nariz-bárbara-maringasBárbara Kirchner. © Maringas Maciel

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Burrice: passado glorioso, futuro promissor

O também ex-seminarista Roberto Campos disse certa vez, numa de suas famosas boutades, que no Brasil a burrice tem um passado glorioso e um futuro promissor. O jornal 0 Estado do Paraná demitiu o cartunista Luiz Solda. Motivo: ele fez uma charge mostrando um macaco dando banana ao presidente dos EUA, Barack Obama. O desenho mostra um macaco fazendo o simbólico gesto de “banana” com os braços e traz a inscrição: “Almoço para Obama terá baião de dois, picanha, sorvete de graviola…e banana, muita banana”. Seus acusadores dizem que ele chamou de macaco o presidente norte-americano. Solda disse: “Jamais faria isso. Nas eleições, eu usei camiseta do Obama”.

Foi um terrível erro de seus editores. O tema é pertinente, a brincadeira é muito apropriada, vez que o Brasil durante muitas décadas foi chamado pelos EUA de Banana Republic. Sem contar que expressões “politicamente corretas” impedem o humor. Já escrevi sobre o tema no Observatório da Imprensa. Volto a ele nestas linhas.

Em minha infância sofrium tipo de preconceito étnico muito singular. Como era moreno, da cor do meu pai,de ascendência portuguesa, era chamado preconceituosamente de “caboclinho”. E, por outros, de “gringuinho”, “filho daquela italiana”: a minha mãe era filha de italianos. A escola representou redenção étnica e social. Passei a ser respeitado por uns e outros pelo meu desempenho escolar. Os boletins acabaram com esses preconceitos.

Em recente reunião de intelectuais, um dos es critores que mais combatem o racismo referiu-se a Barack Obama como “fabuloso negão”. E quando o escritor Václav Havel era presidente da Tchecoslováquia, e depois da República Tcheca, dizíamos tratar-se de um “ polaco maravilhoso”. E ele era tcheco!

Se escrevêssemos isso, seríamos demitidos também? Que horror esse “politicamente correto”! Vai matar o humor, a graça, a brincadeira! Vocês já notaram que Barack Obama jamais se vangloria de ser o primeiro presidente negro dos EUA? Inteligentíssimo e bem formado, ele sabe que apelar para a cor o diminuiria muito! Ele não foi eleito por ser negro, foi eleito por ser bem preparado, culto! Representou um avanço na sociedade americana, que aos poucos deixa de ser excludente e passa a inclusiva, res peitando a pessoa como ela é, independentemente de sua cor, sua opção sexual, sua religião etc.

Pelo mesmo motivo, mulheres e gueis estão sendo eleitos mundo afora para cargos importantes, não por serem o que são, mas porque a sociedade está diluindo preconceitos milenares. Porque só se lembram de punir? Cá para nós, esse “politicamente correto” vai deixar o mundo muito sem graça. Sem contar que, na bela síntese de Otávio Ianni, “o polaco é o negro do Paraná”, e os mesmos que criticam racismo onde não existe jamais se incomodam quando as etnias atingidas são outras!

Jornal do Brasil (30|3|2011)

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Os filmes estão sendo abalados pelas séries ante nossos olhos atônitos

De ‘Twin Peaks’ a ‘Dix pour Cent’, passando por ‘Downton Abbey’, é possível ver a estrada que o gênero percorreu

No tempo em que a arte escrita tinha importância, discutia-se forma e conteúdo. Ficou assente que uma não existe sem a outra. Já a avaliação da relação entre eles continua problemática porque não existem conteúdos e formas fixas: a história os altera.

A forma permanece ao longo do tempo, apesar do seu conteúdo ter origem datada. “Guerra e Paz” remete a almas e destinos do passado e do presente. Dizia uma coisa em 1865 e diz outras tantas a leitores de hoje, à luz da história que se passou e se passa agora.

Na forma, “Guerra e Paz” é um romance, o gênero literário capital no século 19, o herdeiro da épica grega na era burguesa. Hoje, o romance não é tudo isso. Foi trocado por outras formas e gêneros.

A literatura perdeu espaço para o cinema no século 20. E, na migração interna entre os gêneros, o lugar do romance foi ocupado, lenta e contraditoriamente, pelo filme de ficção.

Esse processo não se plasmou numa configuração estável, como antigamente. Ele se acelerou. Tanto que no presente, no tempo de uma vida, são os filmes que soçobram. Estão sendo abalados, ante nossos olhos atônitos, pelas séries de televisão.

É uma vertigem que embaralha formas e gêneros. O filme retém algo do romance porque mostra o destino de personagens que, suscetíveis à história, acumulam experiências enquanto dura a sua trama.

Já as séries estão mais próximas de outro gênero, a novela. Nelas não há acumulação: os personagens não mudam. Tampouco há um clímax ou uma dissolução final. Há um miniclímax no desenlace de cada capítulo —que propagandeia o seguinte.

Nas séries, a sequência não gera um todo que demanda interpretação e crítica, como nos filmes. A relação entre os personagens tende a ser dialética no filme-romance, e mecânico-causal nas séries-novelas.

Postas em ordem cronológica, três séries talvez possam mostrar algo da estrada que o gênero percorreu desde o ponto de partida, os filmes de cinema —que, por sua vez, tiveram origem no romance.

“Twin Peaks”, que estreou em 1990, foi dirigida por um artista vindo do cinema e marcado pela literatura surrealista, David Lynch. A série foi uma combinação —e uma luta— entre cinema e TV, romance e novela, entre arte e comércio.

A concentração da trama no tempo e no espaço, no vilarejo fictício de Twin Peaks, não lhe reduziu o escopo. Ela ia para frente e para trás; duplicava os personagens em diferentes personalidades; recorria a figuras sobrenaturais. A pergunta que lhe serviu de lema propagandístico —quem matou Laura Palmer?—revelou-se sem importância.

A série virou filme, “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer”, do próprio Lynch, que lhe ficou bem aquém. Ele tinha suspense, humor, mistério, mas eram arremedos. Como a série era melhor que o filme, a televisão venceu o cinema ao manter muito da sua forma e pouco do conteúdo: ambos são a-históricos. Continue lendo

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