Que voem todas as suas pedras

Chovia. Saí descalço pra andar na grama encharcada porque gosto disso: banho de chuva! Devagar caminhei até o pé de caqui-café. Meus pés, brancos demais, já estavam gelados.

Eu sabia que ali havia um formigueiro grande, daquelas formiguinhas miúdas, vermelhinhas, de picada ardida. Curioso procurei o tal edifício das formigas e com um galhinho perfurei a parede e afundei e rasguei.

A água da chuva entrou direto e as formigas saíram loucas para fora gritando o alarme com suas antenas em riste. Uma falava pra outra e corria e falava com mais uma e assim agitava-se o condomínio inteiro.

Logo, centenas, senão milhares delas remendavam o castelo. Entretido na observação das atividades das formigas fiquei ali: olhos pregados nelas e a chuva molhando o mundo.

Foi aí que ouvi um choro, um resmungar fundo, um lamento triste demais até para aquele dia chuvoso. Detrás do pinheiro maior dos seis que se reúnem ali há quase um século, havia um anjo com suas duas asas, agachado numa poça d’água, com a cabeça aureolada pendida entre os joelhos. Os cabelos cacheados estavam escorridos e a sua túnica ensopada. Os pés dele dentro da água da poça eram dois peixes albinos. A auréola, feito letreiro de neon, piscava denotando algum curto-circuito ou algo que o valha.

O anjo arfava com a cabeça caída e as mãos postas em súplica. Ao ver a figura deixei imediatamente as formigas de lado e me aproximei daquele anjo bem devagar, para não assustá-lo de jeito algum. Mas, ele pressentiu minha aproximação e ergueu os seus olhos verde-claros e me olhou sem medo nenhum de mim. Seus olhos eram quase transparentes como, aliás, ele inteiro era. Eu podia ver o tronco do pinheiro-mor através do corpo dele. E havia uma fosforescência azulada em torno dele.

Ele levantou-se devagar, devia ter um metro e meio de altura não mais, mas, ele abriu o seu enorme par de asas branco-cinzentas que, de ponta a ponta, deviam alcançar bem uns cinco metros ou mais!

Aí, eu me senti pequeno. Com a borda da manga da sua camisola o anjo enxugou suas lágrimas em seus olhos e voltou a me encarar com aquela cara calma, sem ruga nenhuma, tranquila.

Eu não conseguia fechar a boca! Olhava aquela criatura hermafrodita e semi-transparente parada ali, debaixo do pinheiro-mor do nosso quintal em São Luiz do Purunã e não conseguia acreditar!

Então, ele sorriu! Sorriu fazendo esforço visível, só pra me agradar! Sorriu como sorriem as nossas crianças, como sorriem os pássaros em pleno vôo ou os peixes nas correntes submarinas.

Senti uma paz imensa sendo derramada sobre mim, como uma chuva diversa daquela comum, de água. Essa chuva de paz era leve, sutil, perfumada assim: feito o luar nas noites de verão, perto do mar.

Tentei falar mas, não me vinham as palavras!

E o anjo continuava lá fingindo que ria, sim, fingindo porque qualquer um que estivesse chorando como ele estava a poucos minutos atrás não poderia recuperar-se e sorrir como ele pretendia.

Qualquer um “humano”, né? Porque o caso é que aquele anjo, aliás, como todos os anjos e arcanjos do universo, não são humanos, evidentemente posto que: são anjos e arcanjos!

Depois de secar seus olhos na manga de sua túnica e sorrir, ele fechou e abriu as duas mãos e nelas surgiram luzes pequenas, flutuando sobre as palmas das mãos dele. A luz flutuante gasosa sobre a palma da mão direita era azul celeste e a luz, também pequena e gasosa, na mão esquerda, era alaranjada.

Ele então levantou vôo levitando, bem devagar, subindo em direção à copa do pinheiro-mor. Eu então, sem pensar, tentei agarrar sua túnica branco-cinzentas para puxá-lo para baixo, mas, minhas mãos passaram direto por dentro da túnica.

Ele subiu mais um pouco e parou no ar me olhando lá de cima com certa curiosidade, exatamente como eu quando observava a pouco as formigas lá no formigueiro.

E então, o anjo arremessou a bolinha de luz alaranjada em minha direção e ela veio lenta pelo ar e explodiu bem na minha cara!

Aí o anjo se cobriu inteiro com uma luz violeta e eu senti meu corpo formigar e ouvi, dentro da minha cabeça, uma voz tranquila, nem masculina e nem feminina, dizendo essas palavras que eu nunca compreendi completamente, mas, também sei que nunca as esquecerei.

Ele disse assim:

– “Hosana ao gigante universo! A força viva da luz do mais alto e fundo dos céus!

Que esta luz transpasse todas as suas células e cure todo o seu corpo! Que voem todas as suas pedras! Que sua luz seja livre!”

E então ele foi sumindo no ar em meio aquela luz violeta, até se transformar numa esfera de fumaça e então sumir de vez! Fiquei eu parado olhando pra cima com a chuva varrendo minha cara abestalhada com o ocorrido.

Acho que fiquei ali parado por muito tempo pois, quando finalmente caminhei pra casa vi a pele das minhas mãos enrugadas como quando você fica muito tempo dentro d’água, no mar, numa piscina…

Mas, o que importa pra mim, é que eu me senti bem! E ainda me sinto bem desde aquela aparição angelical.

Então, o que eu quero lhe dizer é: “Que voem todas as suas pedras!” Amém!

HNSG|CTBA|201222

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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