A história que vamos contar

Por tudo o que já foi dito e lido, o dia de ontem virou um marco histórico. A cena da primeira brasileira sendo vacinada contra a Covid-19 em território nacional, uma profissional da linha de frente do enfrentamento da pandemia, com todas as condições e comorbidades que a posicionam no topo da lista de pessoas prioritárias na fila de imunização, é carregada de simbolismos e ficará registrada em nossa memória cultural (ao menos a maioria das pessoas reconhecerá sua importância assim) como um retrato da esperança coletiva em vislumbrar um fim para esse sofrimento.

As feridas decorrentes dele, por outro lado, vão continuar a exigir mais cuidado e paciência de nossa parte, pois demorarão um pouco ainda para cicatrizarem. As oportunidades que se abriram em meio às tantas crises embutidas na pandemia do novo coronavírus tendem a se solidificar e a serem incorporadas no nosso dia a dia, frutos do autoconhecimento, de outros aprendizados e da superação. Desde as primeiras horas da manhã, aviões sobrevoam nossas cabeças e as imagens nos noticiários da TV, sobre a chegada e distribuição dos primeiros lotes nos estados, também transportam alívios e expectativas.

Se sobrevivemos à Covid-19 e estamos vivos até agora para registrar, contar a história desse tempo e apagar as suas luzes, só pode haver duas razões: somos do tipo “vaso ruim” ou portadores da responsabilidade e do compromisso de sairmos melhores disso tudo. Sem dar margem a ingenuidades, a grande mídia, no pior estilo da cerâmica, já se aproveita das euforias geradas e dos descontentamentos óbvios para se apressar em eleger um “salvador da pátria” que possa chamar de seu.

Mas, sabedores de tudo isso, cabe a nós assumirmos o papel de quem tirará um proveito mais nobre dessas lições e deseja que o legado de tamanhas privações e dores possa ser apenas e tão somente o resgate da nossa condição de humanidade. A concentração das doses de vacinação administradas nas regiões e países ricos do Globo, contra os baixos indicadores (nulos até) em países pobres, exibe um retrato triste de um mundo que teima em se constituir desigual. As desigualdades socioeconômicas persistem como os mais perversos fatores de risco para quaisquer pandemias ou catástrofes, sejam naturais ou provocadas, espontâneas, inesperadas ou previsíveis e induzidas.  

Que antes mesmo de nos imunizarmos e voltarmos ao estado de insensibilidade próprio do conforto e da ausência de dúvidas, a gente decifre a fórmula que apontará para um mínimo denominador comum de solidariedade e de empatia. E, como me ensinou uma amiga, engajada em movimentos populares: que essa matemática se dê não por mera generosidade, exercício de caridade de nossa parte, mas guiados pela ética e pelo princípio da igualdade na garantia de direitos. Ou fazemos isso ou continuaremos nos equilibrando nas bordas de um planeta achatado. Não é a história que quero contar de cabeça erguida e com a consciência tranquila para quem virá, na sequência, carregar e definir os significados do estandarte do que entendemos por civilização.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Thea Tavares - Blog do Zé beto. Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.